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Leonardo Sakamoto

Diários do Paquistão: Sob o chicote, no meio do deserto

Leonardo Sakamoto

23/08/2007 15h49

Do deserto de Thar – Eu havia conseguido um lugar para acesso (precário) à internet em uma cidade no meio do deserto, ou seja, o mais difícil. Mas quando comecei a escrever o post de ontem, a eletricidade do local foi desligada. Os moradores me explicaram que o governo paquistanês, para racionar energia, tem cortado a força em algumas cidades. O blecaute pode durar minutos ou horas, dependendo do dia. Aqui o apagão faz parte do cotidiano.

Chegamos a Mithi após uma longa jornada de carro. De manhã, Hyderabad era um cenário indescritível: lixo por todos os lados, piscinas no lugar de avenidas, lama e um cheiro de merda em muitos locais. A partir de Umarkot, o portão de entrada do deserto de Thar (o portão existe mesmo, não é força de expressão, e os nomes são esses, eu não tirei do Senhor dos Anéis), o caminho é quente. Muitas dunas, a maioria delas coberta de vegetação, que estava verde por causa das chuvas que caíram por aqui. Breves, só de passagem.

Uma praia de areia fina, vez ou outra, invade o que deveria ser um acostamento da estrada, ladeado à distância por aldeias de casas de palha e barro, escondidas na paisagem como se não quisessem ser incomodadas. Alguns pastores de cabras e de camelos atrapalham o caminho, o que só se torna uma coisa séria porque temos um motorista alucinado.

Mithi é uma cidade em que a areia está presente em todos os lugares, apesar do asfalto nas ruas. Mas é anos-luz mais limpa que Hyderabad. Pena que os proprietários das oficinas de tapetes cismem em sujá-la de outra forma.

A cidade é uma das tantas que possuem crianças trabalhando como servos em casas de famílias, em lojas do comércio e na fabricação de tapetes de lã, atividade em que se encontram as piores condições.

Visitamos, junto com representantes de outras organizações de combate ao trabalho forçado no Paquistão, também companheiros nessa viagem, um desses lugares. Em uma pequena casa, no estilo tradicional da região, feita de barro e coberta de palha, havia quatro jovens fazendo um tapete de lã em um tear. O mais novo tinha 12 anos, o mais velho 21. Nos contaram que trabalhavam seis dias por semana, 12 horas por dia. Juntos, conseguem fazer um tapete em 30 dias e ganham 5 mil rúpias por isso, o que dá uns 1250 para cada – em um país em que o salário mínimo é de 4600. O dono da oficina vende o mesmo tapete, em Karachi, por 40 mil.

Eles não podem parar de trabalhar. E o pior é que isso ficou acertado entre o dono da oficina e suas famílias.

Tomemos como exemplo o mais velho. Seus pais tinham um dívida com um senhor de terras – aquele pessoal gente boa, de quem falei nos últimos posts, que transforma pessoas livres em servas através de dívidas impagáveis. Para quitá-la, pegaram um empréstimo de 10 mil rúpias com o dono da oficina. E, como garantia, empenharam o trabalho do próprio filho. Hoje, ele tem 21 anos, mas há quatro está nessa vida, tecendo todos os dias. Há ainda descontos do empregador no ganho do rapaz e, para piorar, juros sobre a dívida. Resultado: após todo esse tempo, a família deve a mesma coisa que antes e ele está preso ao patrão. E, como são analfabetos, os pais não têm como checar as contas.

Vocês podem vê-los trabalhando no vídeo que fiz abaixo. Essa voz fininha é de uma das crianças pequenas que vai dando instrução para as outras:

Pelo o que moradores de Mithi me contaram, durante o trabalho essas crianças respiram o pó resultante da fabricação do tapete e ficam doentes (deve ser uma forma de silicose, que também ataca os pulmões de trabalhadores da mineração no Brasil, debilitando-os permanentemente). Mas mesmo doentes são forçados a trabalhar.

E isso é ilegal no país? É claro que é! O Ato da Abolição do Trabalho Servil do Paquistão, de 1992, diz isso e determina a libertação de todas as pessoas nessas condições. Mas temos que lembrar que as coisas não são bem assim por aqui. Muitos desses fuinhas que usam crianças ou adultos como seus escravos são poderosos, alguns possuem força política nacional. A sociedade civil está na luta, mas a situação é difícil.

Trabalho infantil não é novidade para a gente no Brasil. Muito menos trabalho forçado infantil. Temos meninas, por exemplo, que são literalmente vendidas por suas famílias e acabam em bordéis de beira de estrada ou da fronteira agrícola. Toda essa vulnerabilidade social é conseqüência da miséria e da falta de opções de emprego ou de uma terra para plantar. Aqui e aí.

Depois de entoar cânticos em um templo hindu à noite para umas estátuas de divindades de caras bem simpáticas – os que nos ciceronearam na cidade são dessa religião (a fronteira com a Índia fica só a uns 100 quilômetros de Mithi) – pensei ter fechado definitivamente o corpo (já havíamos estado em uma igreja, uma mesquita e um santuário muçulmano).

Mas aí, no dia seguinte, nossa van quebrou… no meio do deserto. E eu me lembrei que faltou algo budista, para completar as principais religiões daqui. Buda foi cruel, não perdoou e arrebentou a correia do alternador e do radiador.

Não foi ele diretamente, mas através do nosso motorista maluco que avançou sobre um obstáculo na estrada, detonando o carro. No meio do sol escaldante e sem água, com aqueles arbustos que quando secos formam bolas de palha que ficam rodando nos faroestes antigos que meu pai assistia, me sentindo dentro de um filme B, esperando uma boa alma.

Enquanto isso, como o dia estava nonsense mesmo, fui ter aulas de como usar um chicote com um pastor do deserto.

Eu tentei.

Mas foi ridículo. Até o pastor desistiu.

A salvação veio na forma de uma carreta que nos guinchou até o vilarejo mais próximo. Ao todo, uma viagem que era para durar cinco, levou 11 horas.

Amanhã, vou mostrar que o ator Raul Julia não morreu. Mudou-se para o Paquistão.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.