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Leonardo Sakamoto

Diários do Paquistão: Senhores do corpo e da alma

Leonardo Sakamoto

24/08/2007 17h10

Karachi – Raul Júlia não morreu. Mudou-se para o Paquistão.

Rodando pelas estradas do Sul do país, me deparei a todo o momento com cartazes e painéis com a foto desse senhor que é a cara do finado ator porto-riquenho que ficou conhecido por filmes como Amazônia em Chamas, o Beijo da Mulher Aranha e, é claro, a Família Adams. Mas, por aqui, seu sósia faz outro papel: o de líder religioso e político e proprietário de terras. Peer Sadrudin Rashdi tem influência no parlamento nacional e nos distritos de Sindh. De acordo com organizações sociais, há muita gente em situação de trabalho forçado nas suas propriedades. Perguntei o que estava escrito embaixo da foto dele e me disseram que, basicamente, era seu nome e apelido. Pô, mas para que alguém vai fazer uma placa desse tamanho só com o seu nome?

"Porque não é necessário dizer mais nada", me explicaram. Provavelmente, a idéia é mostrar que ela está lá, o tempo todo. Se queria isso, certamente conseguiu.

Há muitos senhores de terra que usam sua força para manter intocada a estrutura que garante a exploração do trabalhador, apesar da legislação do país proibir a existência de servos desde 1992.

Ontem, falei das crianças que produzem tapetes em Mithi, no deserto de Thar. Hoje, vou falar das mulheres para explicar outros casos de violência dos zaminders (senhores de terra) contra os trabalhadores, aproveitando nossa visita ao distrito de Mirphurkas.

Postei em um texto sobre as crianças uma foto de uma mulher que segurava um bebê, visivelmente doente, no seu colo. Se a foto é triste, a história dela é um pouco pior. Foi uma entrevista diferente da que estou acostumado, porque a entrevistada quase não falou nada. Acho que era um misto de vergonha do ocorrido com tradição islâmica, uma vez que, apesar das perguntas serem direcionadas a ela, foram seu pai e vizinhos que as responderam.

Ela morava na fazenda de um senhor de terras e teve o marido expulso pelo proprietário, que a estuprou. Das visitas do zaminder à sua cama, nasceram dois filhos, que ele não reconheceu. Além dela, outras mulheres que trabalhavam naquelas terras também foram violentadas. Ela conseguiu ser resgatada de lá, mas o sujeito, que detém poder político, não está preso.

Em outro vilarejo, encontrei Bai. Ela foi retirada de uma fazenda depois de 12 meses de trabalho forçado, em que semeava algodão e colhia 160 quilos de pasto para o gado todos os dias. O patrão costumava bater nela e deixou um de seus filhos surdo depois de espancá-lo.

O senhor de terras não se satisfazia em deter o poder sobre a força de trabalho e também controlava corpos e almas. Ele mantinha homens e mulheres separados durante a noite e as estuprava. Todas.

Bai escapou da fazenda em uma dessas noites e acabou nessa vila para resgatados do trabalho forçado. O senhor de terras chegou a mandar capangas para atacar o povoado e pegá-la de volta, mas a situação se inverteu e quatro dos jagunços foram capturados. Levados à polícia, foram simplesmente liberados.

"Estamos felizes aqui. Temos terra para fazer nossa própria casa e estamos conseguindo uma profissão", referindo-se ao curso de costura que é oferecido por uma organização não-governamental para dar uma alternativa de vida aos moradores.

O rosário de histórias desse tipo é longo, com uma conta igual a outra. Não preciso, portanto, desfiá-las todos.

É claro que existem soluções para esse problema. A discussão é longa e eu espero poder retomá-la nos próximos posts.

Reforma agrária é uma alternativa para fazer com que esses trabalhadores tenham independência e possam tocar sua vida e, ao mesmo tempo, tirar poder desses sujeitos. Mas se ela é difícil no Brasil, aqui ela é ficção científica. Colocar esses senhores de terra na cadeia é outra opção. Mas como botar os donos do poder atrás das grades? Aí no Brasil não é diferente: a gente tem senador e deputado que usaram escravos em suas fazendas e que continuam sorrindo alegremente nos corredores do Congresso…

Bem, vou falar um pouco do que as ONGs daqui vêm fazendo para tentar resolver o problema. Antes de mais nada, há uma verdadeira batalha pelo registro civil, pois dezenas de milhões de pessoas não possuem carteira de identidade. E, sem ela, não há acesso aos programas sociais do governo, como uma espécie de bolsa-escola. Além disso as pessoas podem, ser presas na rua. Em alguns lugares, há muita paranóia, você pode ser confundido com algum agente secreto indiano (não se esqueçam que a disputa sobre quem fica com a Caxemira não está resolvida) e ir para o xilindró prestar esclarecimentos. Nessa viagem, em todos os hotéis e pousadas que ficamos, éramos obrigados a deixar o passaporte para que a polícia local tirasse um xerox. Para nossa segurança, segundo eles. Tá bom…

Uma curiosidade: há algumas carteiras de identidade de mulheres que não possuem foto, só impressão digital. Motivo: o marido não deixou que tirassem um retrato da sua esposa.

Outro problema é arranjar um lugar para morar. No início, após o Ato de Abolição de 1992, a população que era retirada dessa situação conseguia um terreno para fazer uma casa. Hoje, nem isso. Entidades sociais tentam conseguir um lugar para essas famílias que eram servas, foram resgatadas e passaram a não ter um lugar para viver. Muitas desenvolvem vilas-modelo, com o intuito do governo adotar a idéia e levá-la para frente. Não estamos falando de terra para plantar, mas para morar.

Uma importante ação sendo desenvolvida é a organização dos trabalhadores e sua conscientização sobre seus direitos. Já houve conquistas: trabalhadores explorados montaram associações. Comunidades se uniram e conseguiram bater de frente com os senhores de terra, enfrentando inclusive policiais que agiam como seus seguranças privados.

Em um vilarejo que visitei, um homem ficou preso três dias porque o fazendeiro queria que sua irmã se casasse à força com um outro camponês que, como ele, também vivia nas terras do patrão. (Vê se pode, um cara desses brincando de casinha! Mas em que as bonecas que ele decide que devem se casar são gente de verdade.)

Resumo da história: por enfrentar o patrão foi para a cadeia. Mas a comunidade se juntou e conseguiu pressionar até tirá-lo de lá.

Hakim Zadi foi treinada por uma ONG para coordenar um grupo de mulheres pelos seus direitos. "Antes, elas tinham um senhor na própria casa [pais e maridos]. Hoje, podem sair e estão aqui do lado de fora, para lutar por outros direitos." Quando ela diz "sair" é o significado literal, deixar a porta da casa. Agora, Hakim diz que elas estão preparadas para lutar contra outros senhores, agora os de terra.

Podemos dizer que essas ações são coisas simples, que talvez não mudem a vida da população daqui na velocidade que eles precisam. Mas acho que alguns desses projetos irão, aos poucos, fazer pequenas revoluções. Não vão extinguir o trabalho forçado, longe disso. Mas vão trazer dignidade para a vida de muita gente.

Enquanto eu falava com Hakim, de repente aproximou-se uma tempestade, com ventos fortes e muita água. Corremos para dentro da van e a chuva castigou sem dó aquela terra. Na volta, fiquei pensando que realmente Islamabad é uma ilha de frieza. A cidade pode ser mais bonita que o interior do país, mas eu prefiro muito mais a companhia dessa gente simples, humilde e hospitaleira, que faz milagre para sobreviver, mas está sempre sorrindo e cantando.

Espero que a chuva que caiu exatamente quando falávamos de liberdade seja um bom presságio, para limpar essa terra boa desses homens que insistem em interpretar o papel de protagonista da vida dos outros, numa comédia muito da sem graça.

PS: Alguns leitores me mandaram e-mail perguntando como é que estou arranjando tempo para escrever. Não, gente, eu não viajei para Bauru e contratei figurantes para as fotos – até porque achar um camelo seria difícil. Primeiro, é que a comida daqui é muito forte (amanhã eu falo sobre isso) e fico batendo um papo com ela depois do jantar. Além disso, deixei meu notebook com o horário do Brasil. Por exemplo, agora é 1h aqui, mas 17h por aí. Quando estou escrevendo, acabo olhando para o horário daí. Irracional? Ah, mas está funcionando.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.