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Leonardo Sakamoto

Diários do Paquistão: o comércio de órgãos humanos

Leonardo Sakamoto

27/08/2007 11h20

Islamabad – Uns tempos atrás, circulava por São Paulo uma lenda urbana em que uma pessoa atraente oferecia uma bebida em uma balada e depois sugeria uma noite em um motel. Chegando no local, o desavisado capotava por efeito do sonífero na bebida e acordava em uma banheira, cheia de gelo, com um recado ao lado de um telefone: "Não se levante, seu rim foi retirado. Ligue para a emergência".

Pois saibam que o roubo de órgãos não é conto da carocinha por aqui.

Neste exato momento está sendo discutida no Paquistão a probição do comércio de órgãos humanos, atividade que movimenta mais de R$ 30 milhões anualmente por aqui.

O principal órgão comercializado são os rins, e o centro dessa atividade bisonha está localizado nas cidades de Lahore e Rawalpindi, sendo que a maioria dos vendedores são da zona rural da província de Punjab. Uma estimativa divulgada pelo jornal Dawn, um dos mais influentes, apontam que cerca de 70% deles são trabalhadores forçados – aquele pessoal explorado e miserável que venho retratando nos posts.

Desesperadas para quitar a dívida que possuem com o senhor de terras ou o dono de uma fábrica de tijolos, essas pessoas vendem um rim por algo entre R$ 2 mil e R$ 4 mil. Porém, o esforço, que vai debilitar a sua vida para sempre, tem se mostrado inútil. Uma pesquisa também divulgada pelos jornais daqui mostra que 95% dos vendedores continuam pobres e devendo ao patrão, portanto, escravos de sua vontade. Nessa hora, quando percebem a burrada que fizeram, sentem-se culpados, caem na depressão e vão definhando aos poucos.

Cerca de mil transplantes de rins foram realizados em entrangeiros que viajaram ao país com essa finalidade. Pessoas de mais de 20 países do Oriente Médio, América do Norte, Europa e Sul da Ásia. Daí pode-se tirar uma idéia de quem usa o Paquistão como estoque de peças humanas de reposição. O irônico é que, em muitos casos, mesmo com poderosas drogas imunosupressoras, a incompatibilidade leva à rejeição do órgão. Perdem os dois lados, ganha a máfia montada para esse fim.

Quem fica com a maior parte do dinheiro são os intermediários, que negociam as vendas, e as equipes médicas daqui que aceitam realizar esse tipo de operação. E, é claro, o senhor de terras. Há casos relatados por organizações não-governamentais de servos que foram enganados pelo patrão e tiveram seu rim roubado. O sujeito é levado para o hospital, faz exames, é anestesiado e sai de lá sem um rim. Aí o patrão diz que abateu uma parte da dívida com ele, mas não toda. Quando se recuperar da cirurgia, é obrigado a continuar trabalhando.

Apesar de parcelas importantes da população, como a Sociedade de Transplantes, estarem pressionando pela proibição total desse comércio, até agora o governo tem se mostrado conivente com a situação. O primeiro-ministro Shaukat Aziz recentemente jogou a solução para frente, indo contra seu próprio ministro da Saúde.

Um dos motivos para a lenga-lenga é o – acreditem – o intenso lobby sobre o governo dessa máfia que lucra com o comércio de órgãos. Não só aqui, mas em todos os países, a pressão das ricas indústrias da morte é forte. No Brasil, por exemplo, ajudou na vitória do "não" sobre a proibição das armas de fogo.

Desculpem. Este não foi um post leve, ao contrário dos outros até agora. Também nem tinha como ser diferente.

PS: Depois de tantos dias de viagem, estou voltando, mais queimado de sol e um pouco mais magro. Amanhã trago o epílogo desta jornada.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.