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Leonardo Sakamoto

Diários do Paquistão: De volta para casa

Leonardo Sakamoto

28/08/2007 15h13

Islamabad – Londres – São Paulo – Dizem que há um forte esquema de segurança para o vôo entre Islamabad e Londres, que seria um dos mais visados do mundo por conta do medo de atentados terroristas contra o principal aliado dos Estados Unidos na sua cruzada pelo petróleo, quer dizer, contra o terror. Na entrada do aeroporto internacional da capital paquistanesa, policiais usam espelhinhos para verificar o que há por baixo dos carros que entram na área de desembarque de passageiros. "Perceba que eles estão olhando os próprios sapatos. Eles nem sabem o que tem embaixo do carro", diz o nosso taxista. Deu para perceber que o "forte esquema de segurança" não impõe muito respeito.

Entre o check in e o embarque, há várias paradas para verificação de documentos, o que só serve para atrasar e criar longas filas, uma vez que a capacidade daquele pessoal de pegar alguém com más intenções é mínima. Se o Osama chegasse lá com explosivos plásticos, entraria na boa sem ser incomodado. Apesar do número de atentados suicidas dos últimos dias no Paquistão, pelo o que ouvi os caras ainda não estão a ponto de mandar para o paraíso uma quantidade tão grande de compatriotas muçulmanos para obter um resultado contra o Ocidente. O Paquistão não está ocupado pelo exército norte-americano, como o Iraque e o Afeganistão. Ainda.

Como a tática de ser educado não funcionou no vôo de ida, quando minha cara de fundamentalista islâmico me barrou em Heatrow, em Londres, na viagem de volta parti para a grosseria. Afinal de contas, o que eu tinha a perder? Acho que a moça da imigração não esperava alguém responder as perguntas com tanto sarcasmo, ironia e arrogância, e fui autorizado a passar algumas horas na terra da rainha entre um vôo e outro. Tomar o café na ex-colônia e almoçar na ex-metrópole é uma experiência interessante, faz a gente lembrar o que anos de pilhagem fizeram a ambos os lados.

Um paquistanês que mora na Inglaterra tinha ganhado uma viagem para a Disney. Quando chegou aos States ficou sendo interrogado por horas no aeroporto internacional, pois seu nome era o mesmo de um acusado de estar envolvido nos ataques de 11 de setembro. Apesar da insistência dos seus acompanhantes, ele não foi autorizado a entrar no país. De volta, disse que não achou que seu nome lhe causaria problemas e nunca mais iria querer saber dos EUA. O ridículo é que a história é de um moloque de sete anos, que na época dos ataques terroristas tinha o quê, um ano de idade? Um bebê-bomba? Juro que se eu fosse norte-americano me sentiria envergonhado com uma dessas.

Mas não aproveitei a passagem por Londres. Estava com febre, dor no corpo, enjôo, aquele piriri, além de um bate-estaca triturando a minha cabeça. Sintomas parecidos com os que eu tive quando peguei malária no Timor Leste e em Angola. Mas a doença é mais rara nas áreas que visitamos no Paquistão, portanto acho difícil que seja isso. Praticamente, desmaiei no metrô de Londres. O Xavier, meu companheiro de viagem, flagrou a cena.

Chegando em São Paulo, já passei por uma série de médicos e estou fazendo exames e a alegria das indústrias farmacêuticas. O mais provável é que seja uma virose. Até porque, como eu havia comentado dias atrás, o conceito de higiene no interior do Paquistão é algo diferente do que estamos acostumados. Por exemplo, há lugares em que o papel higiênico é raro (inclusive no aeroporto internacional de Islamabad). O mais comum é existir uma torneira e uma espécie de bule de plástico para fazer o papel de bidê. Em outras vezes, a limpeza é feita manualmente, para ser bem direto. Agora, eu entendi porque, segundo o profeta, cumprimenta-se uma pessoa ou serve-se a comida com a mão direita. A esquerda pode ter outros usos menos nobres.

Eu havia comprado em uma cidade no Deserto de Thar um livro escolar. "Everyday English – for Class 7" é uma publicação usada nas escolas da província de Sindh para ensinar o inglês às crianças (uma das duas oficiais, junto com o urdu, em um país que se fala mais 80 línguas diferentes). Lá há discussões sobre os hábitos de higiene e de comportamento, muito baseados no que foi ensinado pelo próprio Maomé. Não sei se passou por uma revisão mais séria… Em um diálogo entre professor e aluno para ensinar exemplos:

– Onde devemos jogar os sacos plásticos?
– Nós devemos enterrá-los no chão.

Não é um bom exemplo. E não é culpa do profeta, porque acho que ele não usava sacos de plástico para fazer a feira.

Outra coisa interessante do livro é ver como a história é contada pelo outro lado. Aprendemos por aqui sobre a dominação árabe na Península Ibérica e sobre a glória da reconquista e da expulsão dos mouros. No livro, dizem que a conquista árabe levou cultura, conhecimento e liberdade de culto para a região e que isso foi responsável por tirar a Europa de sua idade das trevas. OK, cada um conta a história do jeito que quiser, os cristão fazem isso, por que eles também não podem? Mas apesar dos exageros, é verdade que o Sul da Espanha brilhou em conhecimento e tolerância durante uma época em que o resto da Europa ficava esperando o dia do juízo final.

(Essa é uma cópia da página 56, onde é sugerida uma dinâmica de classe, em que parte intepretaria os muçulmanos e parte os cristãos em uma batalha – vencida pelo Islã, é claro.)

Há uma certa lavagem cerebral na educação. Menor nas escolas privadas, maior nas madrassas, que são os centros de educação religiosas. Uma vez que o ensino público é um lixo, a opção por um escola religiosa, que oferece merenda inclusive, é a única saída dos mais pobres. Lá sim, muitos aprendem a ser radicais religiosos. A pobreza está levando ao extremismo.

Mas qual a perspectiva que essas crianças têm ao sair da escola? Entre 2005 e 2006, 73% das pessoas que trabalhavam estavam no setor informal. E o restante, os que estão no setor formal, não estão muito melhores não. Apesar de previsto na Constituição que a fiscalização do trabalho urbana (pois rural nunca existiu) deve atuar para garantir qualidade de vida ao trabalhador, nos últimos anos os governos central e das províncias baixaram uma ordem suspendendo todas as inspeções em empresas. Em muitos lugares, os proprietários fazem uma auto-declaração do que acontece dentro de sua empresa. Um dos intuitos disso seria facilitar a vinda de capital estrangeiro que queira investir em produção no país.

Essa sinceridade toda me mata! Prefiro a hipocrisia brasileira, do engana que eu gosto, em que leis são aprovadas para "a retirada de entraves de investimento, facilitando a capitalização do setor produtivo através da redução nos custos do capital variável". O resultado é o mesmo: tirar da boca do trabalhador para dar para os gringos.

Há muitas coisas que valeriam a pena serem contadas e que por falta de tempo acabaram ficando para trás. Desde a nuvem de gafanhotos, que ficavam pulando no meu notebook, na cama e no banheiro, em Karachi, por causa das chuvas, até a estrutura de castas que permanece em alguns lugares, principalmente nas populações hindus. É estranho alguém estar sentado do seu lado durante uma conversa e, na hora do almoço, ela se retirar porque não pode comer com um impuro.

Ou as pequenas diferenças culturais que atrapalham uma conversa, como muitas pessoas balançarem a cabeça como um "não" para quer dizer "sim" (parece que é pouco, mas isso prega umas boas peças na gente). Há ainda a música – por lá, o povo adora cantar. Pediram para eu entoar alguma brasileira, mas eu os poupei do sofrimento.

E falando em música, segue aí embaixo parte de uma apresentação que vimos com um encantador de serpentes. Infelizmente, a cobra estava de folga. Lembrei de ter lido que, na verdade, o bicho é surdo e o que faz diferença não é o som, mas as vibrações da flauta e o movimento hipnotizante feito pelo tocador. Que, neste caso aqui, era de uma casta de encantadores de cobras, que há gerações aprendem e passam para frente o ofício de domar ofídios.

Visitei lugares muito bonitos, mas não fui para os mais belos do país, que estão na região norte, em que está o Himalaia e a rodovia do Karakoram. Mas não fomos ao Paquistão a turismo e sim para ver qual a realidade daqueles que são obrigados a trabalhar como escravos por décadas ou até gerações, sob a tirania de senhores de terra ou empresários. E ver como a sociedade civil de lá está lutando para acabar com isso. Uma luta difícil e por vezes inglória, como vocês puderam ver aqui nesse blog.

(Na foto, o Xavier mostrando como funciona o trabalho e conscientização por aqui no Brasil)

Muitos dos problemas de lá têm a mesma origem que os daqui: a ganância que transforma homens livres em instrumentos de trabalho. A cultura e a história são diferentes, é claro. Mas em ambos os países, as antigas formas de exploração são reinventadas para levar ao máximo lucro possível. No Brasil, utiliza-se práticas que foram abolidas em 1888. No Paquistão, usa-se um trabalho servil que se encaixa mais na época do feudalismo do que nos dias de hoje.

E se os problemas são iguais, por que não nos unirmos na busca por ações que ajudem a ambos? Afinal de contas, as empresas multinacionais compram o algodão ou tecidos de lá e daqui, muitas vezes sem se importarem com a forma como foram produzidos. Pelo contrário, incentivam a busca pelo menor custo a qualquer preço, mesmo resultando em produtos manchados com o suor e o sangue de trabalhadores da Província de Sindh ou do Estado da Bahia. Se somos diferentes culturalmente, somos irmãos na mesma exploração sofrida. Pois isso independe de cor, credo ou etnia.

E gênero. O Brasil trata mal as suas mulheres. Aqui uma negra ganha bem menos que um branco. Mas a situação nem se compara ao Paquistão, onde em muitos lugares as mulheres não conseguiram conquistar o direito de saírem na rua sozinhas. E essa exploração começa dentro de casa e não na empresa ou fazenda em que se trabalha. Os dois povos terão que superar os preconceitos presentes no machismo brasileiro e no islamismo paquistanês para serem dignos de terem um futuro.

Espero que nossos governos e os povos da periferia do mundo, um dia, percebam tudo isso e se unam em torno desse bem comum.

Grande abraço aos que acompanharam a leitura dos Diários do Paquistão. E continuem visitando o blog.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.