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Leonardo Sakamoto

Juízes põem em prática em casa o que defendem nos tribunais?

Leonardo Sakamoto

22/10/2007 10h05

Esse judiciário me mata.

Um juiz de Sete Lagoas (MG) rejeitou uma série de pedidos de medidas, baseadas na Lei Maria da Penha, contra homens que agrediram e ameaçaram suas parceiras. Sancionada em 2006, a lei torna mais rigorosa a punição da violência contra a mulher.

A Folha de S. Paulo, em reportagem de ontem, pinçou algumas justificativas do juiz Edilson Rumbelsperger Rodrigues, presentes em uma das suas sentenças – que, agora, podem ser revistas no Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

– "Ora, a desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher, todos nós sabemos, mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem (…) O mundo é masculino! A idéia que temos de Deus é masculina! Jesus foi homem!"

– "Para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas dessa lei absurda, o homem terá de se manter tolo, mole, no sentido de se ver na contingência de ter de ceder facilmente às pressões."

– "A vingar esse conjunto de regras diabólicas, a família estará em perigo, como inclusive já está: desfacelada, os filhos sem regras, porque sem pais; o homem subjugado."

Esse caso bisonho vem a tona dois meses depois do juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho, de São Paulo, ter destilado homofobia em um caso que envolvia o jogador são-paulino Richarlyson.

Só para refrescar a memória, Manoel disse no processo:

– "Quem se recorda da Copa do Mundo de 1970, quem viu o escrete de ouro jogando (…) jamais conceberia um ídolo ser homossexual."

– "Não que um homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue, querendo. Mas forme seu time e inicie uma Federação".

– "Cada um na sua área, cada macaco no seu galho, cada galo em seu terreiro, cada rei em seu baralho. É assim que penso."

(O melhor de tudo são os argumentos riquíssimos usados por ambos. É de espantar a capacidade de articulação e conhecimento.)

Repito o que falei há dois meses: um juiz (que deveria garantir que os direitos sejam válidos a todos e proteger os cidadãos ameaçados) vem com uma imbecilidade dessas. Age, dessa forma, não para fazer valer o Estado de Direito, mas sim para incentivar a violênca, empurrando a sociedade à barbárie.

O pior não é encontrar peças jurídicas com um grau de preconceito, estupidez, machismo e ignorância como essas. Se elas fossem apenas distorções, vá lá, uma instância superiora célere, competente e honesta seria capaz de revertê-las e um conselho de justiça aplicaria um corretivo no magistrado em questão. O problema é saber que, infelizmente, essas análises rasas refletem um naco da sociedade brasileira formado por ricos e pobres, letrados ou não.

(Os referidos juízes passaram pelos duros processos de seleção para se tornarem magistrados. Portanto, não são portas burras. Ou seja, não é uma questão de educação pura e simples, como queria fazer crer um livro lançado recentemente. É consciência. E isso não se aprende na escola, nem é reserva moral passada de pai para filho nas famílias ricas. Mas sim na vivência comum na sociedade, na tentativa do conhecimento do outro, na busca por tolerar as diferenças.)

De certa forma, os Três Poderes refletem a sociedade em que estão inseridos. Tristemente, esses dois juízes representam o pensamento de uma parcela da população. Fizeram uma decisão judicial – que tem na sua origem o mesmo preconceito das piadas maldosas contra gays ou dos pequenos machismos do dia-a-dia.

Da mesma forma, o toma-lá-dá-cá obtido nos conchavos no Congresso Nacional é parente direto daquele cafezinho entregue ao guarda para evitar uma multa. O que muda é o tamanho, não a natureza.

Pesquisas apontam que a violência doméstica não é monopólio de determinada classe social e nível de escolaridade. Homofobia e machismo são problemas que ocorrem em toda a sociedade. Ok, coloquemos a culpa no processo de formação do Brasil, na herança do patriarcalismo português, nas imposições religiosas, no Jardim do Éden e por aí vai. É mais fácil atestar que somos frutos de algo, determinados pelo passado, do que tentar romper com uma inércia que mantém cidadãos de primeira classe (homens, ricos, brancos, heterossexuais) e segunda classe (mulheres, pobres, negras e índias, homossexuais etc.). Tem sido uma luta inglória, mas necessária. Que inclui uma profunda reflexão sobre nossos próprios comportamentos e a exposição daqueles que, em cargos públicos, rasgam os preceitos básicos dos direitos fundamentais.

Torço para que o juiz Edilson não exerça em casa o que ele pronuncia no ofício.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.