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Leonardo Sakamoto

Uma chinelada de globalização na Amazônia brasileira

Leonardo Sakamoto

26/10/2007 02h20

De Guarantã do Norte – Estou na última cidade matogrossense da rodovia Cuiabá-Santarém (BR-163) antes do Pará. Vim para um seminário sobre a promoção do trabalho decente no norte do estado. Cidade de poucas décadas, com ruas projetadas, 30 mil habitantes e quase 300 mil bois em 4,7 mil quilômetros quadrados.

Para chegar aqui a partir de São Paulo, o viajante tem duas opções: esquecer-se dentro de um ônibus ou avião – avião – avião (esse terceiro, um turbohélice, sacode bastante – principalmente agora em que as chuvas começaram) e transporte terrestre. O pessoal reclama que está frio. Eu, sinceramente, acho uma afronta chamar 29º C de frio. Mas para um povo que está acostumado a temperaturas bem menos cristãs, isso aí já é motivo para tirar blusas do armário.

Há um mês, antes da chuva, o tempo estava pior, a bem da verdade: o Mato Grosso tinha sido coberto por uma névoa de pó e fuligem. Para você, conterrâneo paulistano, uma referência para entender o céu daqui na época da seca, em que as queimadas correm soltas, é lembrar do horizonte de São Paulo no mês de julho. Sabe aquela nhaca amarelo-acinzentada? Pois bem, igual, mas em toda a parte.

Muita gente aproveita a falta de chuva e desce o fogo na mata. Depois bota a culpa em São Pedro ou em "incêndios criminosos". Ah, sim… Que criminoso bonzinho é esse que limpa a área de um fazendeiro de graça, preparando-a para o plantio?

O pai de um amigo meu que mora em Cuiabá descreveu a cidade como o rascunho do mapa do inferno nesses últimos meses por conta das queimadas somadas à poluição da capital. A muralha formada pela Chapada dos Guimarães não fica muito distante, o que ajuda a atrapalhar a dispersão de poluentes.

E o mundo vai esquentando e as coisas vão piorando… O povo daqui diz que nunca viu tempo tão seco quanto os últimos meses de estiagem. O Teles Pires, rio que corta o centro-norte do Mato Grosso, abaixou bastante. O Araguaia também. Desmata-se para produzir, mas em breve pode não haver água para isso em decorrência de um processo que envolve o próprio desmatamento. Tiro no próprio pé.

Não sei se já havia comentado com vocês nesse espaço, mas sou um daqueles que não gosta de andar de avião – o que é ruim, pois quase toda a semana tenho que pegar um. E detesto quando alguém me fala que é besteira, porque é o meio de transporte mais seguro que existe. Sim, estatisticamente. Mas se o carro morrer na estrada, eu dou a partida de novo ou paro para empurrar. E o avião? Eu faço o que? Espero que o piloto consiga fazer ele pegar no tranco?

Bem, mas na tentativa de me destrair entre um solavanco e outro nos céus do Mato Grosso fiquei analisando um anúnio fixado estrategicamente na frente dos bancos da aeronave (estrategicamente porque não tem como você fugir dela durante mais de uma hora de vôo). Era de um carro da montadora Fiat:

Viva a globalização:
Você dirige um Fiat Punto
Com Skydome e tecnologia Blue&Me
E os europeus andam com
sandálias brasileiras de borracha

Sinceridade total! É uma aula de política em forma de propaganda. Tomo apenas a liberdade de deixá-la um pouco mais clara:

Viva a globalização:
Você compra um produto com alto valor agregado
Importado ou produzido aqui, não importa. O que importa é que você vai ter que pagar o preço da tecnologia a multinacionais no exterior
Enquanto isso, vendemos mercadorias com baixo valor agregado,
como chinelos e produtos agrícolas não industrializados
E como carros com Sky e Blue valem mais que chinelas
Nós, os chineleiros, seremos eternamente dependentes dos que são donos das montadoras.

Isso ganha contornos mais interessantes considerando que, pelo lado de fora da janelinha do avião, centenas de milhares de hectares de soja e milhares de cabeças de gado espalhavam-se pelo o que já foi floresta. E por mais que as commodities nos dêem bilhões de dólares ao ano com as vendas ao exterior (nós, não, desculpem, porque a maioria não participa dessa divisão de lucros), nossa economia continua a ser amparada no fornecimento de matéria-prima para outros países. Ou seja, produtos com baixo valor comparado com o que a gente acaba comprando deles.

O melhor de tudo é que muito do aço de carros que importamos já foi minério de ferro no subsolo do Pará ou de Minas Gerais e árvore da Amazônia ou do Cerrado (antes que virasse carvão para cair em um forno de siderúrgica). Isso sem contar que a superexploração dos trabalhadores envolvidos em mineração ou carvoejamento faz o aço ficar mais competitivo e todo mundo sair lucrando. Menos o peão.

Que, no final, fica com uma terra nua e contaminada e um ar amarelo-acinzentado, enquanto a gente vem e vai de avião.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.