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Leonardo Sakamoto

Peixoto de Azevedo: a cidade para além do acidente da Gol

Leonardo Sakamoto

28/10/2007 12h28

De Sinop – O ouro criou muitas cidades no Brasil. E arruinou outras tantas. Não sei bem ao certo se é uma benção ou uma desgraça alguém fazer soar, pela primeira vez, o grito de "Ouro! Ouro!" em determinado lugar. A notícia corre rápido, de boca em boca, e antes que o poder público e a mídia saibam o que está acontecendo, milhares de pessoas já foram atrás do grito, em busca de enricar – ou, pelo menos, melhorar de vida. Barracos são erguidos às pressas, comerciantes trazem seus produtos, botecos são abertos. Vêm as prostitutas para um alívio pago às dores do corpo e os compradores de ouro, a fim de tirar rapidamente dos bolsos dos garimpeiros as riquezas obtidas.

Com o tempo, e se a jazida for respeitável, essa zona se transforma em vila e depois em cidade. Algumas até prosperam e se especializam na mineração, outras ganham poder político. Há várias dessas histórias espalhadas pela História do país. Mas a maior parte delas mostra que a época áurea não dura para sempre e a queda é sempre dura. Muitas cidades do ciclo do ouro colonial só agora se reabilitam pelo turismo ou agricultura. Por exemplo, Peixoto de Azevedo, no nortão do Mato Grosso, que ainda procura um novo lugar ao sol.

Em 1979, encontraram ouro na região – que havia entrado no mapa com a abertura da rodovia Cuiabá-Santarém durante a ditadura militar. No mapa dos brancos, porque a terra já era moradia do povo indígena Panará, que foi sumariamente expulso no frigir das escavadeiras e terraplanagens. A cidade foi fundada em 1986, mas o ouro já ditava as regras fundiárias e sociais bem antes disso.

O povo conta que antes, na época do ouro, aquilo ali era uma loucura, com um entra e sai de gente a todo o momento. Com o tempo, os buracos foram ficando mais fundos na ânsia de ir atrás do ouro que tinha fugido da superfície. Ficou difícil com as próprias mãos e com dragas comuns ir lá buscá-lo. Hoje, no centro comercial da cidade, há um rosário de lojas fechadas, com as portas de aço estendidas até o chão.

Não estou falando que a cidade é decadente. Peixoto de Azevedo é uma cidade agrícola, tem cerca de 29 mil almas, 276 mil bois, 47 mil galinhas e 3 mil toneladas de arroz, 2,6 mil de soja. A madeira é um negócio forte, com 17 mil metros cúbicos de lenha e 10 mil de toras extraídos anualmente. Mas ela acalmou, perdeu a agitação de outrora e deixou de ser o centro das atenções na região.

Laminadora de madeira à beira da rodovia Cuiabá-Santarém

Quer dizer, até setembro do ano passado, quando as equipes de resgate retiraram os corpos das vítimas do acidente com o avião da Gol de uma área remota do município.

Ainda se retira ouro da região. E como antes, a riqueza não fica por lá. Empresas estrangeiras foram para o norte do Mato Grosso e trouxeram tecnologia para explorar o ouro profundo. Poços de centenas de metros de profundidade foram perfurados e construídas galerias com quilômetros de extensão. Com o tempo, hospitais passaram a receber casos de trabalhadores com silicose, uma doença que atinge quem está exposto constantemente a partículas sólidas muito pequenas.

Poeiras entre 0,5 e 7 micra de tamanho (um micron equivale à milésima parte de um milímetro) podem permanecer nos alvéolos e bronquíolos do pulmão quando inaladas. O constante atrito na membrana pulmonar faz com que o organismo reaja, criando uma lesão. A regeneração desse local leva à formação de um tecido mais fibroso e menos elástico, diferenciado do tecido normal pulmonar. Com o passar dos anos, até décadas, o pulmão vai perdendo elasticidade e diminuindo a capacidade pulmonar. Até uma hora em que o sistema entre em colapso. A utilização constante de máscaras simples e baratas poderia evitar a inalação do material e uma futura fibrose pulmonar. As empresas foram autuadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego.

A cor dourada da soja é vista como uma forma de ter de volta o frenesi do passado. Mas o aumento de sua produção significa outras formas de impacto ambiental que conhecemos bem. E, com ela, a riqueza continuará indo embora ou ficando nas mão de uns poucos com um custo social alto. Como antes.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.