Topo

Leonardo Sakamoto

Uma nova Justiça para velhos problemas

Leonardo Sakamoto

30/10/2007 16h51

João Humberto Cesário, juiz da Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia (MT), é um dos magistrados mais atuantes no combate ao trabalho escravo e à superexploração de seres humanos no país. Suas sentenças e acordos têm transformado a escravidão em um mau negócio naquela região. Já foi ameaçado de morte, mas não arreda o pé de lá. Mineiro de Uberaba e palmeirense roxo (como este que vos escreve), radicou-se no Mato Grosso e não quer mais voltar.

Na disputa entre opressores e oprimidos, ele toma partido destes últimos, lembrando que a justiça deve ser justa e não cega – ao contrário do que querem fazer crer alguns doutores que abundam nas cortes de Brasília.

É bom saber que São Félix do Araguaia, terra de Pedro Casaldáliga, continua com gente disposta a comprar briga pesada contra fazendeiros e poderosos.

Abaixo, está a conclusão de um texto que o juiz João Humberto escreveu – "Um velho problema para uma nova justiça" – sobre os desafios para o combate ao trabalho escravo. Vale a pena ler:

Temos a firme convicção de que o trabalho escravo é um velho problema, que deve ser resolvido à luz de uma nova justiça. Precisamos, urgentemente, sem perder a essência daquilo que nos conduziu até aqui, construir uma Justiça do Trabalho ainda mais ágil e despida de dogmas, na qual a responsabilidade para com a construção da sociedade livre, justa e solidária delineada na Constituição seja um compromisso inarredável. Em síntese, temos em mãos o desafio de trabalhar pela definitiva abolição do trabalho escravo, lamentavelmente renitente em nosso país, em pleno século XXI.

Para tanto carecemos de magistrados combativos e criativos, suficientemente rígidos para aplicar as sanções necessárias com vigor, mas ao mesmo tempo dotados da necessária maleabilidade para não se deixarem levar por legalismos tolos e estéreis, que não raro se prestam à deturpação do princípio da legalidade, como se o juiz nada mais fosse do que a mera "boca da lei", mito que há tempos embala a conveniência de liberais e neoliberais.

Necessitamos, em suma, de agentes verdadeiramente dispostos a se aproximarem dos setores oprimidos da sociedade, de modo a conhecerem de perto as suas angústias e necessidades. Além da prestação jurisdicional célere, justa e eficaz, a população clama por travar um diálogo profundo e verdadeiro com o Poder Judiciário. Estamos convencidos de que além de julgar, possuímos uma tarefa pedagógica e participativa para desenvolver junto ao povo, na qual possamos ensinar, aprender e construir.

Ao lado de tudo isso, é imprescindível que o nosso movimento associativo continue a trabalhar pela afirmação da competência penal da Justiça do Trabalho, já que não faz nenhum sentido que aqueles que se valem de mão-de-obra escrava sejam por nós processados nos âmbitos do direito do trabalho (reconhecimento de vínculo, verbas rescisórias, salários, horas extras, seguro-desemprego…), do direito civil (danos materiais, danos morais individuais, danos morais coletivos…) e do direito administrativo (penalidades administrativas impostas pelos órgãos estatais da fiscalização trabalhista) e por outro ramo do Poder Judiciário na esfera do direito criminal. Aliás, cumpre indagar: a quem interessa essa dicotomia?

Nosso intento é colaborar para a transformação do "Vale dos Esquecidos" [como é tratada por alguns a região entre o Pará, Mato Grosso e Tocantins] no "Vale da Cidadania". Almejamos que a experiência da Vara de São Félix do Araguaia no combate ao trabalho escravo possa ser um dos tubos de ensaio do novo tempo da Justiça do Trabalho. Afinal, se muito vale o que já foi feito, mais vale o que ainda virá.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.