Da rampa antimendigo às floreiras: a São Paulo entre muros
São Paulo está se aprimorando cada vez mais na arquitetura da exclusão. O tema não é exatamente novo e ocupou espaço na mídia quando o prefeito José Serra resolveu implantar no complexo viário da avenida Paulista as chamadas rampas antimendigo, grandes blocos de concreto que impedem o povo de rua de montar sua casinha imaginária para se proteger do tempo e do mundo. E proteger, dessa forma, a gente de bem que estaria sendo assaltada durante as longas pausas dos congestionamentos.
Resolvi retomar o assunto só para lembrar que ele não começou com as rampas da Paulista e nem vai terminar com elas. Há muitos anos, o vão formado pela rua Teodoro Sampaio sobre a rua Mateus Grou, no bairro de Pinheiros, era residência de vários sem-teto. A associação de amigos da rua construiu rampas para enxotá-los de lá. Tempos atrás, reformas começaram a ser feitas no centro de São Paulo para tirar ou vazar a marquise de prédios. Ganha um doce se alguém advinhar para quê…
Nesta semana, vi que o mesmo aconteceu na rua João Moura, no trecho sob a avenida Paulo VI/Sumaré. Implantaram canteiros de flores para mandar as pessoas para longe de lá. Se as flores que serão plantadas lá soubessem o que custou sua chegada murchariam de vergonha.
O interessante é que alguém, que provavelmente morava ali ou se indignou com isso, pixou o muro em frente com um lembrete incômodo:
Já que não se encontra solução para um problema, encobre-se. É mais fácil que implantar políticas de moradia eficazes – como uma reforma urbana que pegue as centenas de milhares de imóveis fechados para especulação e destine a quem não tem nada. E mais bonito do que aceitar que, se há pessoas que querem viver no espaço público por algum motivo, elas têm direito a isso. A cidade também é deles, por mais que doa ao senso estético de alguém. Ou crie pânico para quem acha que isso é uma afronta à segurança pública. Em vez disso, são enxotados ou mortos a pauladas para limpar a urbe para os cidadãos de bem.
Logo após a fundação da vila de São Paulo de Piratininga, José de Anchieta, com a ajuda de índios catequizados, ergueu um muro de taipa e estacas para ajudar a mantê-la "segura de todo o embate", como descreveu o próprio jesuíta. Os indesejados eram índios carijós e tupis, entre outros, que não haviam se convertido à fé cristã e, por diversas vezes, tentaram tomar o arraial, como na fracassada invasão de 10 de julho de 1562. Ao longo dos anos, a vila se expandiu para além da cerca de barro, que caiu de velha. Vieram os bandeirantes – hoje considerados heróis paulistas -, que caçaram, mataram e escravizaram milhares de índios sertão adentro. Da África foram trazidos negros, que tiveram de suportar árduos trabalhos nas fazendas do interior ou o açoite de comerciantes e artesãos na capital. No início do século 19, a cidade tornou-se reduto de estudantes de direito, que fizeram poemas sobre a morte e discursos pela liberdade. Depois cheirou a café torrado e a fumaça de chaminé, odores misturados ao suor de imigrantes, camponeses e operários. Mas, apesar da frenética transformação do pequeno burgo quinhentista em uma das maiores e mais populosas metrópoles do mundo, centro financeiro e comercial da América do Sul, o muro ainda existe, agora invisível. E, 453 anos após a fundação de São Paulo, esse muro impede o acesso dos excluídos à cidadania.
Ou, às vezes, como no caso da rua João Moura, nem tão invisível assim.
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