Topo

Leonardo Sakamoto

Frei Henri está novamente marcado para morrer

Leonardo Sakamoto

19/11/2007 18h59

Frei Henri Burin des Roziers lembra de todas as vezes que recebeu ameaças de morte explícitas. Por sorte ou precaução, nenhuma veio a se concretizar. O que não significa que muitos latifundiários do Pará e Tocantins não queiram vê-lo morto. "Cheguei ao Brasil no fim de 1978. Em 1979, vim para cá acompanhando um agente pastoral ao Bico do Papagaio [norte do atual Estado do Tocantins]. É terra sem lei. Os posseiros totalmente oprimidos, pequenos, não tinham uma organização mínima. Queriam minha expulsão do país. Interessante… O delegado que pedia isso e tentou me processar se chamava Hitler Mussolini." Desde então, Henri ficou por aqui.

Advogado de formação e dominicano por vocação, esse parisiense de quase 80 anos tem sido um defensor dos direitos humanos na região de fronteira agrícola amazônica. Durante anos, esse advogado foi a única assessoria jurídica dos trabalhadores nessas regiões.

Entre 1971 a 2006, foram registrados no Estado do Pará, 814 assassinatos no campo, dos quais 568 permanecem sem apuração. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, os casos investigados resultaram em 92 processos criminais e 22 foram ao Tribunal do Júri, sendo que 16 pistoleiros e seis mandantes foram condenados. Porém, desses mandantes apenas um está preso. Em 2006, havia 118 pessoas ameaçadas de morte.

Hoje, tornaram-se públicas suspeitas que já corriam na região. O assassinato de Henri está novamente encomendado.

Nota da Comissão Pastoral da Terra:

No dia 18.10.07, chegaram informações na Policia Militar de Xinguara, que 3 pistoleiros estariam contratados para assassinar Frei Henri pelo valor de R$ 50.000,00. As fontes, as pessoas envolvidas e os detalhes comunicados mostram, na opinião da PM e da CPT de Xinguara, a procedência das informações e a seriedade das ameaças.

Em razão da sua atuação como advogado da CPT, na luta pela terra, no combate ao trabalho escravo, à impunidade e contra arbitrariedades policiais, Frei Henri des Roziers recebe há muito tempo, várias ameaças, que às vezes necessitou de proteção. Desde fevereiro de 2005, após o assassinato da Irmã Dorothy, por ordem do Governo Estadual, o religioso está sob a proteção da Policia Militar.

No entanto, diante do contexto em que se vive no Estado do Pará, marcado pela violência e pela impunidade, não faz sentido oferecer proteção policial aos ameaçados de morte se não são adotadas medidas eficazes para sequer concretizar as condenações judiciais referentes aos mandantes e executores de trabalhadores rurais.

Há tempo que nós da CPT insistimos com os responsáveis pela Segurança Pública do Estado do Pará, para que a policia investigue seriamente a origem das ameaças, realizando um trabalho preventivo para evitar as mortes. Todavia isto não tem sido prioridade para o Estado, pois é mais cômodo oferecer segurança policial para os casos de maior repercussão. No caso concreto é vale dizer que a CPT aguardou todo esse tempo sem tornar pública a denuncia esperando que a policia procedesse a investigação. No entanto, não recebemos até o momento informações concretas sobre os resultados.

A violência na região tem uma origem histórica. Durante a ditadura militar, o governo federal concedeu uma série de subsídios financeiros a empresas para que se instalassem na Amazônia, garantindo também infra-estrutura e segurança aos seus empreendimentos. Isso foi feito sem a ordenação da divisão das terras ou instalação de serviços essenciais que garantissem os mesmos direitos de ocupação para pequenos colonos e posseiros. Com isso, a Amazônia tornou-se uma região livre para o capital e seus interesses, em que o poder econômico fazia a lei.

Frei Henri está há mais de 20 anos morando na região e viu de perto o poder econômico chegar e esmagar a população rural. Tempos atrás, entrevistei Henri, que me explicou esse processo:

"Há uma cultura da violência. O problema da posse da terra se tornou mais forte a partir dos anos 70, quando entrou muita gente nesta região pioneira. Daqui [Xinguara] até Conceição do Araguaia era mata virgem, Xinguara nem existia. Entrou gente de todo o tipo, fazendeiros, madeireiros. Entraram também muitos sem-terra da época, posseiros. A terra era de todo mundo. Mas chegaram empresários com incentivos fiscais do governo, que incentivavam a produção agropecuária através de seus bancos de financiamento.

Isso provocou um conflito entre os posseiros legítimos, com mais de um ano de posse, e as empresas recém-chegadas, que queriam pilhar tudo. A primeira Comarca [de Justiça] de Xinguara foi criada no final da década de 80. Até então, o Estado era coisa inexistente. Até 1989, você tinha uma só comarca em Conceição do Araguaia, que abrangia Santana do Araguaia, Santa Maria das Barreiras, Rio Maria, Xinguara e São Geraldo. Uma área imensa. Um juiz só para toda essa região. E não havia telefone, a comunicação era muito mais difícil. Polícia só em Conceição.

Com o Estado totalmente ausente, as coisas se solucionavam necessariamente a partir da própria força de arma de cada um. (…) Acompanhamos, por exemplo, toda a apuração, o processo e o julgamento dos assassinos dos sindicalistas da região de Rio Maria nos anos 80 e 90. Os fazendeiros resolveram acabar com o sindicato dos trabalhadores de Rio Maria e assassinaram uma série de presidentes. Nessa época, era um dos sindicatos mais atuantes da região.

Foi assassinado o primeiro presidente em 1985. Depois, foi a vez de um dos líderes em 90 e seus dois filhos, que eram do sindicato, o terceiro saiu ferido. Foi assassinado, em 90, um diretor. E, em 91, o sucessor dele, além de baleados outros. Passei da região do Bico-do-Papagaio para aqui a fim de ajudar na apuração desses crimes. Tem dado um trabalho enorme até hoje, mas conseguimos que todos os pistoleiros fossem a júri.

Vários foram condenados. Todos fugiram."

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.