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Leonardo Sakamoto

Transito é o que importa. Às favas com os sem-teto...

Leonardo Sakamoto

11/12/2007 19h43

A favela do Real Parque acordou hoje com a polícia batendo à porta para uma reintegração de posse. Sem aviso prévio, chegaram chegando: "Vocês têm duas horas para sair". O proprietário do barranco que serve de moradia a dezenas de famílias pobres, a Empresa Metropolitana de Águas e Energia, pública e, portanto, pertencente a todos nós, queria o terreno de volta.

Quem passou o dia lá, tentando resistir, sentiu na pele balas de borracha, bombas de gás lacrimogênio, desocupação forçada, violência. Para protestar e se fazer ouvir, fizeram a única coisa possível: ocuparam a pista da avenida Marginal Pinheiros, sentido Interlagos. A interrupção causou o maior congestionamento do ano na capital paulista.

Estou esperando o texto com o depoimento de uma amiga jornalista, que mora na favela do Real Parque, e que passou o dia no meio desse redemunho. Mas não posso deixar de externar duas coisas. Primeiro, o ato em si, violento, totalitário e estúpido. Que ocorre em um local que já é o retrato acabado da desigualdade urbana do feudo paulistano: de um lado, as favelas do Real Parque e do Jardim Panorama, do outro, o Parque Cidade Jardim, empreendimento de R$1,5 bilhão que está em fase de construção. Só a maquete de R$ 800 mil custou o equivalente a 53 casas populares.

Segundo, a cobertura da mídia. A grande maioria dos veículos de comunicação deram manchetes para o congestionamento e relegaram ao segundo plano a tragédia humana que está ocorrendo agora. Colocam depoimentos de motoristas reclamando que perderam a hora para alguma coisa, xingando os "baderneiros", mas não se ouviu direito os moradores. Eles aparecem na tela para mostrar o "drama" e desaparecem quando já deram audiência suficiente. Ninguém discute a questão da moradia na cidade, que possui milhares de imóveis vazios, inclusive do poder público, enquanto um exército mora ao relento ou submora. Cadê o governo para explicar sobre o que (não) vem fazendo com relação às políticas de habitação?

"Ah, mas o congestionamento afetou a vida de mais gente, por isso é a notícia mais importante." O conceito de relevância jornalística se perde em justificativas como essa, desumanizando a situação. Os dois fatos são notícia. Mas o que está acontecendo no Real Parque hoje não é um caso isolado de meia dúzia de favelados e sim um exemplo da forma como o governo estadual vem tratando os mais pobres. O que está acontecendo ali se reproduz com uma triste freqüência pela periferia de São Paulo. Milhões de pessoas conseguiriam se reconhecer nessas histórias se elas fossem retratadas corretamente pela imprensa.

Mas isso interessaria a quem?

Afinal de contas, não é quem tem carro que apanhou e vai dormir no relento hoje.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.