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Leonardo Sakamoto

Quando o país vai tratar com dignidade os "seus" bolivianos?

Leonardo Sakamoto

16/12/2007 16h23

Cerca de 500 pessoas anteciparam hoje a comemoração do Dia Internacional do Imigrante, que é festejado oficialmente no dia 18 de dezembro. O ato aconteceu na Praça da Sé, Centro da cidade de São Paulo. Pelos rostos e sotaques dos que estavam lá, a esmagadora maioria era de sul-americanos, mais especificamente, bolivianos. Pediram o fim do trabalho escravo, uma nova lei para o trabalho estrangeiro e mais dignidade.

Gostaria de sugerir a leitura de um belo esforço de reportagem, escrito e fotografado pelo repórter Antônio Gaudério, publicado no jornal Folha de S. Paulo deste domingo. Ele viajou à Bolívia, conseguiu ser "aliciado" para um serviço em oficinas de costura na capital paulista, percorreu o caminho que milhares de imigrantes fazem de lá até aqui todos os meses em busca de um futuro melhor e viveu as condições degradantes de trabalho a que estão submetidas essas pessoas. O seu relato pessoal traz à tona a histórias de pessoas que garantem que tenhamos o que vestir, mas são relegados à invisibilidade da cidadania. Acompanha o relato em primeira pessoa (do qual colei uma parte no final deste post) uma matéria de Cláudia Rolli e Fátima Fernandes, jornalistas que vêm cobrindo há algum tempo o tema da exploração do trabalho dos imigrantes em São Paulo.

Os preços baixos de roupas em ruas como a José Paulino ou a Oriente que tanto atraem os consumidores do varejo e do atacado são muitas vezes obtidos através da redução dos custos no processo de produção. A maior parte dos funcionários utilizados na confecção dessas roupas é composta por imigrantes latino-americanos em situação ilegal no Brasil. Bolivianos, paraguaios, peruanos, chilenos compõem um verdadeiro exército de mão-de-obra barata e abundante em São Paulo. Saem de seus países de origem em busca de uma vida melhor em solo brasileiro, fugindo da miséria. Das comunidades latino-americanas na capital paulista, os bolivianos destacam-se por constituir a mais numerosa. Além disso, encontram-se nas situações mais graves de exploração e degradação do trabalho humano.

Os bolivianos entram no território brasileiro através de cinco portas principais: Corumbá (Mato Grosso do Sul), Cáceres (Mato Grosso), Foz do Iguaçú (Paraná), Guajará-Mirim (Rondônia, por via fluvial) e Manaus (Amazonas, por via fluvial). Aqueles que não conseguem cruzar a fronteira por meios legais – porque não têm documentos ou não querem ou não podem pagar pelo visto – têm de desviar da fiscalização da Polícia Federal. Uma opção é seguir até o Paraguai e aguardar nos chamados "ninhos". Nestes pequenos apartamentos, em que os coiotes colocam até 40 imigrantes, os bolivianos esperam o momento de poder atravessar a fronteira. Em alguns, a superlotação é tão grande que fica impossível deitar-se para descansar. A situação de higiene também não é das melhores, com um único banheiro atendendo a todos, que chegam a ficar o dia inteiro sem água e comida.

Para atravessar a fronteira do Paraguai com o Brasil em Cidade do Leste/Foz do Iguaçu, a estratégia dos traficantes de mão-de-obra é esperar o momento em que os policiais federais não estejam checando a documentação de todos (o que ocorre quando há muita gente trafegando pela Ponte da Amizade, que liga os dois países, e os policiais não dão conta da tarefa). Do lado brasileiro, um ônibus espera os bolivianos aliciados para levá-los a São Paulo.

Em São Paulo, eles acabam trabalhando meses de graça para pagar o seu transporte, alojamento e alimentação. As oficinas funcionam em porões ou locais escondidos, pois a maior parte delas é ilegal. E a fim de que suspeitas não sejam levantadas pelos vizinhos, que acabariam alertando a polícia, as máquinas funcionam em lugares fechados, onde o ar não circula e a luz do dia não entra. Para camuflar o barulho das máquinas, música boliviana e rádio. Em algumas delas, os cômodos são divididos por paredes de compensado. Essa é uma estratégia para que os trabalhadores fiquem virados para a parede, sem condições de ver e relacionar-se com o companheiro que trabalha ao lado – o que poderia resultar em mobilização e reivindicação por melhores condições.

Em muitos casos, o dono da firma, quando se ausenta, tranca a porta pelo lado de fora, para que ninguém entre ou saia do recinto. Além disso, há locais que não oferecem as mínimas condições de segurança e higiene: a fiação é exposta e traz riscos de choques e incêndios.

Outro ponto que alimenta a manutenção do sistema é a coerção psicológica a que são submetidos os bolivianos. Por estarem, a grande maioria, em situação ilegal no país, sofrem ameaças por parte dos patrões de que, se tentarem fugir ou reclamarem daquela situação degradante, serão denunciados à Polícia Federal. Há patrões que adotam ainda uma outra prática que contribui para manter o trabalhador sob seu domínio. Logo no primeiro dia de trabalho, o dono da oficina recolhe os documentos dos imigrantes e os guarda em seu poder. A prática de retenção de documentos é largamente utilizada entre os fazendeiros da região de fronteira agrícola.

A solução para isso passa por mudanças no Estatuto do Estrangeiro, regularizando o trabalho dessas pessoas e tirando dos intermediários instrumentos de coerção, como o medo da denúncia. O Estatuto (Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980) veda aos estrangeiros com visto de turista, temporário ou de trânsito, o exercício de qualquer atividade remunerada. Exceção é feita quando o estrangeiro tem uma comprovação da entidade que o contratou. Como este não é o caso dos imigrantes latino-americanos que vêm ilegalmente para as oficinas de costura em São Paulo, o trabalho deles é considerado, pela legislação brasileira, um trabalho ilícito, ilegal. Dessa forma, não recebem qualquer direito.

Mas se os direitos do capital são trasnacionais (e a exploração do trabalho também), por que os direitos dos trabalhadores têm nacionalidade carimbada? Empresas como a holandesa C&A, em cuja cadeia produtiva já foi detectado trabalho escravo boliviano, se comprometeram com o Ministério Público do Trabalho a atuar junto às suas cadeias produtivas e impedir esse problema. Se empresas estrangeiras têm direito a se adequar ao país quando são flagradas com problemas, por que os trabalhadores que foram explorados devem ser deportados quando são encontrados de forma irregular?

Já defendi em outras oportunidades uma taxa aplicada junto à cadeia produtiva de vestuário envolvida com o trabalho degradante de estrangeiros como uma forma de garantir recursos para criar estruturas de atendimentos técnico e jurídico, de apoio e de inserção a esses trabalhadores. Se o lucro fica com a iniciativa privada, grande parte da responsabilidade também deveria ficar.

O Ministério do Trabalho e Emprego fez uma grande campanha para regularizar a situação dos imigrantes ilegais. Mas isso não basta. Para começar, porque há custos de taxas, que muitos não podem pagar.

Uma integração regional de verdade vai além da derrubada de barreiras comerciais. Passa também pelo livre trânsito de pessoas. Sei que discutir isso é difícil, ainda mais porque temos milhões de miseráveis no nosso próprio quintal. Mas fechar os portões, expulsá-los ou explorá-los em silêncio significa tratá-los da mesma forma que os Estados Unidos nos tratam às margens do rio Grande. Como animais.

A torneira continua aberta, com gente fluindo do Altiplano boliviano para cá em busca de melhores condições. Ou seja, não adianta melhorar a situação dentro do Brasil enquanto para além de suas fronteiras as condições continuam críticas.

Erram, portanto, aqueles que acham que não devemos ajudar no desenvolvimento da Bolívia, Paraguai, Peru. Pois o destino deles e o nosso estão mais conectados do que eles imaginam. Se forem para o brejo, acreditem, nós também iremos, com levas cada vez maiores de pessoas que deixarão sua terra natal para tentar a sorte em outros lugares. O que vai aumentar os problemas sociais nos locais escolhidos como destino. Ou a América Latina será boa para todos ou os poucos privilegiados não aproveitarão o butim.

Abaixo, um trecho da reportagem de Antônio Gaudério:

O preço de um vestido

Com jornadas diárias de 17 horas em troca de cama e comida, imigrantes bolivianos vivem rotina de trabalho degradante e superexploração nas confecções de roupa de São Paulo

Para entender como funciona o tráfico de mão-de-obra e como vivem os milhares de imigrantes ilegais bolivianos de São Paulo, o repórter-fotográfico Antônio Gaudério deslocou-se para La Paz com um telefone celular dotado de câmera fotográfica, uma muda de roupas e seus documentos brasileiros. Procurou anúncios de trabalho, conversou com agenciadores e até se diplomou como overloquista em uma escola de La Paz. Tudo para ser aceito em uma das centenas de confecções controladas por bolivianos e coreanos que existem em São Paulo. Gaudério submeteu-se a jornadas de trabalho de 17 horas. Sem nenhum direito trabalhista, ele teve que aceitar um contrato verbal pelo qual trabalharia três meses sem salário, apenas em troca de cama e comida. "Depois a gente conversa", disse-lhe o chefe.

16/11 – A CHEGADA

Começo por El Alto, cidade adjacente a La Paz, onde funciona um imenso mercado do tamanho de 350 campos de futebol, em que se compra e vende tudo: de mapas velhos escritos em japonês a velhas Mercedes-Benz e fetos de lhamas, usados em rituais de feitiçaria.

No setor de usados, compro calça, camisa, sapatos, pente, espelho de bolso e um pote de gel Didazul extra fuerte. Reparto meu cabelo ao meio, como o presidente Evo Morales e todos os imigrantes bolivianos que conheci no bairro do Brás, em São Paulo.

Compro um rádio e sintonizo nos 6.080 kHz da emissora católica São Gabriel. O locutor se expressa em amará e quéchua, línguas de origem indígena. Parece um disco em espanhol rodando ao contrário. Consigo entender "costurero", "overloquista", "Brasil" e os números dos telefones. Anoto e tento me candidatar, mas, nos primeiros tropeços do espanhol, as vagas desaparecem.

21/11 – A BUSCA

Volto para La Paz e me hospedo em um alojamento com diária de 25 bolivianos, cerca de R$ 6, na avenida Buenos Aires. A região é centro de comércio popular durante o dia e esconderijo de traficantes, drogados, bêbados, prostitutas e ladrões à noite. Entre cartazes que anunciam "Atenção, doadores de rim. Compramos o seu por até US$ 4.000", encontro ofertas de vagas para costureiros com ou sem experiência que queiram trabalhar no Brasil ou na Argentina: "Buen sueldo. US$ 150. US$ 200 [mensais]".

Ao cabo de seis dias, estou exausto, sem dormir, nauseado, com dor de cabeça, por causa do "mal de altitude" (La Paz fica 3.600 m acima do nível do mar). Piora a situação uma diarréia causada pelo pão com terra, frango com terra, suco de laranja com caldo de mão suja, tudo vendido na rua poeirenta.

Aparência miserável, estou no ponto. Vou à rua Albaroa, 195, falar pessoalmente com Julia Fernandes, dona do anúncio "Necessito costureiros para o Brasil. Ambos os sexos. Buen Sueldo".

Mais ou menos 60 anos, dona Julia é simpática. Fica acertado que me arrumará o emprego e que eu viajarei para o Brasil com um casal dentro de três ou quatro dias. Pela porta estreita entreaberta do quarto escuro, vejo um vulto de boliviano gordo que nos observa, imóvel.

Não dá certo. Dona Julia Fernandes some dois dias depois de nossa conversa.

Procuro outro anúncio, que promete "sueldo" de US$ 200 mensais. Ao telefone, um homem de voz grossa e forte encerra minhas pretensões avisando: "Só contratamos bolivianos legítimos para trabalhar para coreanos. Não ligue mais".

O jeito é apelar para os anúncios que havia recolhido em São Paulo, na feira Cantuta, no Pari, onde se reúnem aos domingos os bolivianos. Com a ajuda de uma paceña (mulher nascida em La Paz), consigo duas promessas de ser recolhido na rodoviária ao chegar a São Paulo e as dicas necessárias:

Dizem-me que devo viajar via Ciudad del Este, no Paraguai, porque a fiscalização em Corumbá (MS) está muito rigorosa. Também me orientam a fazer um curso de costura.

Para ler a continuação da reportagem (para assinantes da Folha), clique aqui.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.