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Leonardo Sakamoto

Morre Suharto. Pena que o açougueiro não foi a julgamento

Leonardo Sakamoto

27/01/2008 12h28

Haji Mudammad Suharto morreu neste domingo, aos 86 anos, em conseqüência de uma falência múltipla de órgãos. O regime do ditador indonésio durou 32 anos, período em que o país viveu um grande crescimento econômico, mas também massacres de seu próprio povo e genocídios decorrentes de invasões militares em Irian Jaya (a parte esquerda de Papua Nova Guiné) e, principalmente, Timor Leste. Suharto morre sem ter sido julgado. Com isso, a humanidade perde uma grande chance de refletir sobre sua história.

Mas antes que comece o processo de "santificação" do morto, em que críticas são postas de lado em detrimento às boas coisas que o sujeito fez em vida (isso ocorre em todo o mundo, como podemos ver nos velórios dos coronéis brasileiros), acho bom relembrar o legado de sangue que Suharto deixou.

Suharto seria como Pinochet asiático. Mas, com todo o respeito aos que padeceram nas mãos do general chileno, ele é um aprendiz comparado ao carniceiro de Jacarta. Assim como Suharto, Pinochet morreu antes de ser condenado pelos crimes que cometeu. E assim como ele, até hoje é incensado pelos feitos na economia do seu país.

Desculpem o tamanho do texto. Percorri a Indonésia e o Timor Leste, em 1998, para cobrir a guerra pela independência e as denúncias contra violações de direitos humanos e depois defendi um mestrado sobre o assunto. Não acho que, com isso, eu seja um especialista no tema. Mas como vi com os meus próprio olhos o resultado das políticas expansionistas de Suharto, não posso deixar a morte dele passar em branco.

O genocídio de Suharto

No dia 30 de agosto de 1999, 78,5% da população do Timor Leste votou a favor de sua independência e contra a integração definitiva com a Indonésia – o auge de 24 anos de resistência à dominação e guerra pela independência. A ocupação, mantida à força pelo governo do general Suharto, causou um dos maiores genocídios do século 20, 44% de timorenses foram mortos direta ou indiretamente pelo conflito – tendo como base o número de habitantes em 1975. Ou seja, cerca de 300 mil pessoas.

Após a invasão, uma grande fome se instaurou sobre o Timor em 1979. Em alguns campos de concentração, a taxa de mortalidade atingia 2,5 mil pessoas por mês, a ponto de observadores internacionais afirmarem que as condições de Timor eram tão ruins quanto às existentes no Camboja ou em Biafra. Nas décadas seguinte, as mortes continuaram a acontecer diretamente, por violência, ou indiretamente, por fome ou doenças decorrentes da ocupação.

Humilhações públicas, prisões arbitrárias, desaparecimentos, torturas e maus tratos, uso excessivo da força, execuções extrajudiciais, julgamentos com cartas marcadas, supressão da liberdade de expressão. Histórias de esquartejamentos em praça pública de membros da resistência timorense ordenados pelos homens de Suharto ainda correm entre os moradores da ilha e produzem marcas no imaginário popular.

Um grande número desses atos de violência foi registrado em imagens. Um deles, o Massacre do Cemitério Santa Cruz, documentado em fotografias e gravado em vídeo, despertou a atenção da comunidade internacional para o problema timorense, revelando pela primeira vez as atrocidades cometidas pelo exército de Suharto na ilha. No dia 12 de novembro de 1991, o exército, abriu fogo contra uma manifestação pacífica de estudantes que lembravam a morte de um jovem assassinado. Os soldados cassaram as pessoas que se refugiavam dentro do cemitério. Estimativas apontam para 271 mortos, 259 desaparecidos e 382 feridos.

Suharto aplicou "limpeza étnica" sob seu governo. Além da esterilização forçada, comum no interior de Timor, havia também a prática sistemática de estupros das mulheres. Em 1998, havia na capital de Timor, Dili, organizações que prestavam apoio a essas vítimas de abuso sexual – muitas se negavam a abortar e acabavam tendo os filhos dessa violação. Ouvi vários relatos de pessoas que tiveram parentes ou amigas atacadas por soldados indonésios pelo fato de estarem grávidas e terem seus bebês arrancados à força do útero, rasgando-se o ventre. Se analisarmos isso ao lado das correntes de imigração com a distribuição de terras e cargos administrativos, podemos visualizar as bases de uma política de substituição da população timorense por javaneses fiéis ao sistema.

Java, a ilha onde se localiza a capital Jacarta, dita os rumos políticos, econômicos e sociais do país. Menor que o Estado de São Paulo e com quase a população brasileira, é a mais industrializada, graças ao pesado investimento captado em agências internacionais de fomento nos anos Suharto e à maciça pilhagem de outras províncias. Petróleo, ouro, diamantes, ferro, bauxita, manganês, madeira, cobre e uma série de recursos naturais são extraídos ao longo do arquipélago e enviados para as grandes cidades de Surabaya (Java oriental), Semarang (Java central), além da capital (em Java ocidental).

As forças armadas de Suharto, majoritariamente compostas de javaneses, consideravam-se superiores não apenas aos timorenses, mas aos povos das outras províncias do país. Era clara a distinção governamental entre cidadãos de primeira e segunda ordem em toda a Indonésia. Em várias províncias, como Aceh (na ilha de Sumatra) ou Kalimantan (em Bornéo, lembram-se do jogo War?) viu-se ao longo dos anos movimentos separatistas ganharem força, organizando grupo paramilitares, promovendo passeatas e executando atentados, sempre contra Suharto e sua política de violência e a explícita preferência aos interesses dos cidadãos javaneses.

Cerca de 8,5 milhões de pessoas das regiões mais densamente povoadas do país foram remanejadas para Sumatra, Kalimantan, Molucas, Irian Jaya e Timor Leste entre 1969 e 1994. Muitos observadores associam os surtos de violência nessas ilhas nos últimos anos a ressentimentos provocados pela "transmigrasi" (transmigração). As casas, clínicas e escolas construídas pelo governo beneficiariam apenas os transmigrantes, em sua maioria javaneses. Tudo feito com financiamento do Banco Mundial.

Suharto com carta branca para matar

A primeira fase da democracia na Indonésia durou de 17 de agosto de 1945 (com a declaração de independência da Holanda, comandada pelo presidente Sukarno), a 30 de setembro de 1965 – na tentativa de golpe e contragolpe que culminou em sua deposição e levou o general Mohammed Suharto ao poder. Sukarno era um dos principais articuladores da conferência de Bandung, que veio a dar origem ao Movimento dos Não-Alinhados. Adentrou os anos 60 com uma retórica cada vez mais nacionalista e um crescente tom anti-Ocidental na política externa. Relações com Pequim e com Moscou melhoravam enquanto fragmentavam-se as com os Estados Unidos.

Para manter-se no poder, moldou uma coalização de forças chamada de Nasakom (abreviação de nacionalistas, religiosos e comunistas em bahasa indonésio). A união desses três grupos deu-se mais por habilidade política do presidente do que por afinidade entre eles. Contudo, o crescimento do Partido Comunista (PKI) e sua constante defesa por mudanças internas, como a reforma agrária, tornou-se fonte de preocupações para uma série de grupos islâmicos, que temiam ter seu poder reduzido. Apoiado por Sukarno, o partido era o maior do gênero fora da China e da União Soviética.

Em 30 de setembro de 1965, houve uma tentativa de golpe por parte de militares. Estes, por sua vez, afirmavam que a ação era para evitar um golpe de Estado que estava sendo preparado. O exército, liderado por Suharto, respondeu à tentativa, reestabelecendo a ordem. Na seqüência, o Partido Comunista foi responsabilizado e liquidado como força política. Nos meses seguintes, houve um extermínio de membros e simpatizantes partido em toda a Indonésia. Estimativas vão de 100 mil a mais de um milhão, sendo que as mais confiáveis apontam entre 300 e 400 mil mortos – também um dos maiores massacres do século 20. Ao mesmo tempo, Sukarno perdeu o comando, deposto por Suharto, que assumiu seu lugar.

Esse massacre foi recebido como uma vitória da Guerra Fria sobre o comunismo. Em uma reportagem da época, a revista Time diz que as mortes eram "as melhores notícias para o Ocidente em anos na Ásia". O não-alinhamento, por mais que permanecesse em teoria, tinha sido deixado de lado na prática. A Indonésia, sob Suharto, se transformou em importante parceiro norte-americano na contenção da URSS.

O Congresso dos Estados Unidos, por diversas vezes, apoiou planos de ajuda de armas ao país. Acordos militares possibilitavam, por exemplo, a passagem de submarinos nucleares americanos por estreitos de águas profundas da Indonésia, de modo a não serem detectados pelos soviéticos. Os EUA fizeram vistas grossas às violações aos direitos humanos e repressão a minorias. Ou mesmo à invasão de países vizinhos.

Em 17 de Abril de 1975, os Khmer Vermelhos chegavam ao poder no Camboja. Em 30 de Abril, a queda de Saigon, no Vietnã, mandava as tropas americanas de volta para casa. A 1º de dezembro, o movimento comunista Pathet Lao destitui a monarquia e forma a República Democrática Popular do Laos. O ano de 1975 foi especialmente conturbado no Sudeste Asiático e preocupante ao bloco de países capitalistas liderado pelos Estados Unidos. Esse desvio à esquerda na região, em grande parte, foi resultado de uma grave situação social, que os governos de então não foram capazes de resolver, aliada à situação internacional. O Sudeste Asiático era uma região politicamente estratégica para ambos os pólos de poder mundial. E o domínio da Indochina era fundamental aos Estados Unidos para a contenção da expansão soviética.

Para manter essa região sobre controle, influência ou, pelo menos, neutralidade política, houve investimentos econômicos e militares diretos e indiretos na década de 80. O perímetro de defesa americano na Ásia-Pacífico se estendia do Japão até a Tailândia, onde, ao sul, na divisão de águas com a Indonésia, está localizado o Estreito de Málaca. Importante rota comercial mundial, é ponto de passagem de navios que fazem a conexão entre a Europa e o Extremo Oriente.

Com as perdas na Indochina, o surgimento de mais um "foco"comunista, como o Timor era tachado, era uma opção inaceitável pelo Ocidente. Principalmente se considerarmos o tamanho e a diversidade indonésia e a possibilidade, vendida por Jacarta, de haver uma seqüência de províncias tornando-se independentes e optando por alinhar-se à esquerda – um efeito dominó. Para se ter uma idéia do saco de gatos que é o país, a Indónésia é um arquipélago formado por mais de 10 mil ilhas, 600 diletos e 300 etnias.

Às vésperas do início da ocupação timorense, o secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, havia mantido uma audiência com Suharto, em Jacarta, capital da Indonésia, junto com o presidente Gerald Ford. O ditador, que era peça-chave da estratégia geopolítica para a área de contenção comunista na bacia do Pacífico, recebeu apoio norte-americano. Kissinger concordou com o plano indonésio, pedindo apenas que a ação fosse "rápida, eficiente e [sem o uso do] nosso equipamento". Nenhuma das três recomendações foi seguida.

Suharto conseguiu o que queria dos Estados Unidos – que acabou por tornar-se refém das decisões do ditador ao injetar uma grande dose de legitimidade às suas ações. Para garantir a contenção na região da "esquina do mundo", os EUA pagaram um preço mais alto que o valor. A ponto de Madeleine Albright, então secretária de Estado norte-americana na administração Bill Clinton, reconhecer, no final do governo Suharto, que a política externa para a região talvez não tenha sido a mais correta e eficiente.

Durante os últimos 20 anos, enormes investimentos e empréstimos foram destinados dos Estados Unidos, Europa e Japão à Indonésia. Além disso, o país recebeu recursos também de outros emergentes do Sudeste Asiático: mais de US$ 30 bilhões foram aprovados de 1991 a 1994, vindo principalmente do Japão, Taiwan, Coréia do Sul, Hong Kong e Singapura. A economia doméstica cresceu a uma média de quase 7% ao ano no mesmo período.

Com isso, a era Suharto foi responsável por um crescimento sem igual da economia indonésia. O país deixou de ser apenas um exportador de produtos agropecuários e matérias-primas e se industrializou, diversificando a economia. O relatório sobre desenvolvimento do Banco Mundial de 1990 apontou que a Indonésia possuía a "mais alta redução anual na incidência de pobreza entre todos os países estudados".

Em 1998, a dívida externa do país estava avaliada em US$ 150 bilhões, sendo que o banco Indosuez estimava um número superior a US$ 200 bilhões. Cerca de 70% dela era de responsabilidade do setor privado, sendo que apenas 50 indonésios, familiares diretos e indiretos de Suharto (com fortuna estimada, na época, em US$ 60 bilhões), eram responsáveis por dois terços do total – segundo os próprios bancos.

O governo do ditador apoiou-se em favores entre a alta cúpula militar e as classes alta e média. E eram constantes os casos de indonésios que foram presos por protestar contra o regime ou simplesmente discordar das políticas públicas adotadas.

Com o tempo, a irresponsabilidade de Suharto no processo político, a fraqueza do legislativo e do judiciário (ambos sob o controle do executivo), a existência de uma corrupção oficialmente institucionalizada e uma indefinição sobre quanto tempo o ditador ficaria no poder criava grandes custos ao desenvolvimento econômico. Isso em um contexto pós-Guerra Fria, em que o apoio financeiro norte-americano era cada vez menor.

Na crise econômica pela qual passou o Sudeste Asiático, entre 1997 e 1998, houve falta de comida (o governo priorizou a exportação de produtos agrícolas à sua venda no mercado interno com o objetivo de capitalizar as reservas), saques a supermercados e confrontos entre a polícia e os estudantes. O país não estava conseguindo honrar todos os seus compromissos externos ou mesmo as rígidas metas estipuladas com FMI, que pediu aumento no preço de combustíveis, transporte público e eletricidade para que as contas do governo fossem eqüalizadas. Além disso, Suharto não dava mais garantias de estabilidade às empresas estrangeiras instaladas no país e estava levando os mercados dos países vizinhos para baixo junto com o da Indonésia. Líderes políticos exigiram a sua renúncia, o que aconteceu em 20 de maio de 1998. Em seu lugar, assumiu o vice-presidente – seu filho adotivo – Baharuddin Yusuf Habibie. Um governo sem legitimidade que foi substituído pouco depois pela eleição de Abdurramah Wahid, líder da maior organização muçulmana do país, tendo como vice, Megawatti Sukarnoputri, filha do falecido ex-presidente Sukarno. Que viria a ser presidente.

A Indonésia entrou em um ciclo democrático e está melhor do que antes. Mas as bases de violação aos direitos humanos, de desigualdades social, étnica e regional e de corrupção semeadas durante os anos Suharto vão permanecer por muito tempo no país.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.