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Leonardo Sakamoto

Cortando a conversa fiada

Leonardo Sakamoto

14/02/2008 15h32

Viena – O painel "Engajando o setor privado em uma luta ativa contra o tráfico humano: oportunidades e desafios", apresentado ontem (13) durante o Fórum das Nações Unidas sobre Tráfico Humano, estava bem disputado, até com gente sentada no chão – inclusive este que vos escreve. Mas, a meu ver, houve muito blá-blá-blá. A discussão tratou de como levar as empresas a atuarem de forma responsável em suas cadeias produtivas para evitar o tráfico de seres humanos. Sobre respeitar o tempo do setor privado em sua suposta mudança lenta e contínua a caminho da sustentabilidade. Algumas críticas a corporações, mas também cobranças sobre mais participação de governos e organizações da sociedade civil. A necessidade de diminuir a pobreza foi levantada algumas vezes, mas de forma desconectada. O que é uma pena, uma vez que isso é condição fundamental para atacar o problema.

Deu preguiça… Impacientes com o conteúdo, algumas pessoas começaram, como eu, a sentir a bunda quadrada e fria devido ao chão do inverno vienense.

No Brasil, a discussão com o setor empresarial já está bastante adiantada – temos inclusive um pacto nacional que envolve a iniciativa privada no combate ao trabalho escravo. Não que todas as empresas tupiniquins ou gringas em solo de Pindorama que assinaram esse documento tenham comportamentos exemplares. Até porque há grandes empresas que continuam operando na idéia do lucro a todo o custo.

Mas parte delas não ficou com a bunda na cadeira e tem cortado fornecedores escravagistas ou pressionado quem lhes fornece mercadorias a adotar uma postura mais responsável.

Acho, porém, que todo o diálogo tem um limite. Chega o momento que o embate se faz necessário, principalmente quando algumas empresas não querem, em prol da qualidade de vida alheia, largar o osso que vêm roendo há tempos. Nessa hora, é partir para o enfrentamento – social, econômico e político.

Em pequena escala foi o que aconteceu ontem na parte final do painel, quando uma participante de uma organização não-governamental indiana fez o contraponto que faltava. Algo assim: "gostaria de ressaltar que a questão da responsabilidade das corporações deveria ser analisado por outro ângulo. São elas que estão provocando a geração de milhares de pessoas vulneráveis ao trabalho escravo, que só terão como alternativa serem traficadas. São deslocadas, expulsas de sua terra e nunca recebem as compensações que poderiam contrapor os danos".

Adoro esses constrangimentos.

O setor empresarial fala muito em investimento social privado (que é botar dinheiro em projetos, investir em ações da comunidade, coisas desse tipo), mas se furta a cumprir uma verdadeira responsabilidade social empresarial – que, grosso modo, é evitar que a sua existência atrapalhe a vida da comunidade que mora à sua volta ou da sociedade em que ela está inserida. E é exatamente a iniciativa privada a geradora de trabalho escravo, ao usar homens, mulheres e crianças descartáveis para poupar custos e lucrar. Direta ou indiretamente.

Ou seja, não é um favor ou um ato de bondade elas atuarem no fim do tráfico. É obrigação delas que não provoquem impactos desse tipo com suas atividades.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.