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Leonardo Sakamoto

Relatório alerta para impactos causados por agrocombustíveis

Leonardo Sakamoto

24/04/2008 20h52

Buenos Aires – A Repórter Brasil divulgou nesta quinta (24), o relatório "O Brasil dos Agrocombustíveis – Impactos sobre terra, meio e sociedade", volume 1 – Soja e Mamona. Com 60 páginas, o relatório, que analisa os impactos socioeconômicos, trabalhistas, fundiários, ambientais e sobre comunidades tradicionais causados pelas culturas da soja e da mamona, foi divulgado em português, espanhol e inglês. O lançamento aconteceu na Mesa Redonda pela Soja Responsável, em Buenos Aires, evento que reúne o setor, além de organizações não-governamentais – ou seja, um bom momento para cobrar um posicionamento de produtores e empresários.

O relatório, em formato digital, está disponível, em português, espanhol e inglês no endereço: www.agrocombustiveis.org.br.

Com a publicação do primeiro volume do relatório "O Brasil dos Agrocombustíveis – Impactos das lavouras sobre terra, meio e sociedade", o Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis da Repórter Brasil dá início a um acompanhamento sistemático dos impactos causados por culturas utilizadas na produção de agroenergia. O trabalho, dividido em três relatórios anuais, está avaliando os efeitos das culturas da soja e da mamona (volume 1), do milho, algodão, dendê e babaçu (volume 2), e da cana e do pinhão manso (volume 3).

Nesta etapa, os pesquisadores rodaram 19 mil quilômetros por dez estados brasileiros, além do Paraguai, para analisar o impacto das culturas. O relatório traz exemplos de casos, mapas, dados e estatísticas de todos os problemas retratados.

A crescente demanda internacional por agrocombustíveis constitui-se no mais novo fator de incentivo ao avanço da produção de soja no Brasil. Estima-se que o país ultrapassará ainda em 2008 os EUA como maior exportador e, no máximo em seis anos, consolidará a maior área plantada do grão no mundo. Se por um lado essa expansão gera riqueza para alguns produtores e divisas com exportações para o país, por outro tem intensificado impactos como o desmatamento, a contaminação de rios, a concentração da terra e a exploração do trabalhador, principalmente em regiões do Cerrado e da Amazônia.

Por enquanto, o principal impulso à expansão da soja é indireto. O aumento da demanda nos EUA pelo etanol produzido com milho incentivou o plantio desse grão e contribuiu para estancar a área de soja por lá. Isso vem a se somar a um quadro de intensa demanda mundial por farelo para ração animal, fazendo com que os preços internacionais do grão, que andavam em baixa, voltassem a subir. Diante desse cenário, o produtor brasileiro resolveu plantar mais. Entre as safras passada e à 2007/08, a lavoura sojeira aumentou em 20% na região Norte (onde está a maior parte da floresta Amazônica) e em 7,9% no Nordeste, sobretudo nas áreas de Cerrado do Maranhão, do Piauí e da Bahia. No Brasil, a soja é a principal matéria-prima usada para produzir biodiesel. O consumo atual para atender a mistura obrigatória de 2% no diesel de petróleo e produzir em 850 milhões de litros de biodiesel por ano é estimado em 3,5 milhões de toneladas de soja – um montante ainda pequeno, porém, para influenciar os preços do grão.

O cenário futuro projetado para os sojicultores é de um mercado aquecido. A intensa demanda deve manter o processo de substituição de pastagens pelo plantio do grão, o que estabiliza áreas desflorestadas, muitas vezes ilegalmente, e empurra a pecuária cada vez mais em direção à Amazônia, incentivando o desmatamento. Bacias hidrográficas fundamentais para a sociobiodiversidade brasileiras estão ameaçadas pelo plantio indiscriminado de soja em terras que, pela lei, deveriam ter sua vegetação preservada, como matas ciliares. Também enfrentam os problemas trazidos pela contaminação de seus rios, cujas nascentes encontram-se em áreas de agricultura, como ocorre no Parque Indígena do Xingu.

Há até mesmo casos em que a soja vem sendo produzida sobre terras já oficialmente reconhecidas como tradicionalmente indígenas pelo Estado brasileiro. Por exemplo, há plantio na Terra Indígena Maraiwatsede dos Xavante, em Mato Grosso, e em diversas áreas reconhecidas como de ocupação tradicional dos Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul.

Apesar da intensa mecanização do setor, trabalho escravo tem sido encontrado em fazendas de soja na etapa de limpeza do solo para a implantação de lavouras. Dados da "lista suja" do trabalho escravo, cadastro público de empregadores que utilizaram esse tipo de mão-de-obra mantido pelo Ministério do Trabalho e Emprego, de 2007 mostram que 5,2% dos casos ocorreram com o grão. Empresas e instituições financeiras têm implementado instrumentos de combate ao trabalho escravo, incentivadas pelo Pacto Brasileiro pela Erradicação do Trabalho Escravo. Mas ainda há falhas e soja colhida por produtores da "lista suja" ainda entram no mercado.

Contudo, os impactos trabalhistas concentram-se na baixa geração de emprego por conta da mecanização da produção (de um a quatro empregos direitos a cada 200 hectares) e nos acidentes de trabalho relacionados à operação de máquinas e ao uso de agrotóxicos, intensamente utilizados na produção convencional e transgênica. São crescentes os números de trabalhadores e comunidades do entorno de lavouras que sentem os efeitos de defensivos agrícolas. Por exemplo, em 2005, 6.870 procuraram serviços de saúde com a contaminação.

O processo de expansão da soja, baseado em um modelo de grandes propriedades mecanizadas, incentiva a concentração de terra e o êxodo rural. No que pese o produção de soja ter aumentado, o número de propriedades rurais dedicadas ao grão caiu 42% em uma década. A taxa foi de 16,3% para as outras propriedades. Esse processo de expansão não têm sido pacífico: ele pode estar por trás de pelo menos quatro dos 16 conflitos agrários no Estado do Mato Grosso em 2007, de ao menos 18 dos 38 conflitos anotados no Paraná, e de pelo menos dois dos 105 conflitos apurados no Pará.

Se por um lado é cedo para dimensionar o peso que os agrocombustíveis representam nos preços das commodities agrícolas, por outro já é possível concluir que o aumento de demanda proporcionado por eles tende a pressionar os alimentos, em um cenário em que as cotações de produtos como soja, milho e trigo alcançam patamares recordes. O Fundo Monetário Internacional calcula a alta dos preços dos alimentos em 30,4% entre novembro de 2004, início da escalada, e dezembro de 2007. A opção por agrocombustíveis não irá fazer nascer a fome no mundo, uma vez que ela já afeta centenas de milhões de pessoas diariamente. Mas certamente agravará o quadro.

Entre as recomendações feitas para o poder público estão o corte de financiamentos e renegociações de dívidas com os empresários responsáveis por esses impactos, e também que não se permita a expansão agrícola no Cerrado e na Amazônia sem estudos que comprovem a viabilidade sócio-ambiental, que as populações locais tenham sido devidamente consultadas e que a soberania alimentar seja garantida. Para o setor empresarial, propõe-se um cuidado profundo com suas cadeias de fornecedores e o próprio comportamento das companhias. É hora de refletir se crescimento não trará mais resultados negativos do que positivos para a sociedade.

Crescer é importante, mas desde que ele tenha uma finalidade social. Ou seja, que os grãos colhidos sejam coletivos – coisa difícil de acontecer no Brasil.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.