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Leonardo Sakamoto

Proposta na Câmara abre as portas para o trabalho infantil

Leonardo Sakamoto

31/07/2008 14h57

Conhecem aquele ditado da pessoa que joga fora o bebê com a água suja do banho? Esse é o caso da proposta de emenda constitucional (PEC) 268/2001 que prevê a redução da idade mínima para o trabalho legal no país. Ela altera o artigo 7º da Constituição, que proíbe o trabalho de menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz a partir dos 14 anos. Diminui as idades para 14 e 12 anos respectivamente.

Segundo o autor do projeto, o deputado federal Celso Russomano (PP-SP), isso pode mudar a vida das crianças e adolescentes que são pedintes nas ruas ou aliciadas para o tráfico. Além disso, afirma o deputado, a lei antiga já não contempla a realidade do país e, por isso, precisa ser mudada.

Em bom português, o que ele propõe é o seguinte: já que o Estado e a sociedade são incompetentes para impedir que seus filhos e filhas dediquem sua infância aos estudos e ao desenvolvimento pessoal, vamos aceitar isso e legalizar o trabalho infantil. Por que o trabalho forma o cidadão.

E qual seria o próximo passo quando o mercado e a competição global abocanharem trabalhadores cada vez mais jovens? Reduzir a idade para dez anos? Já que até nosso presidente minimiza as condições dos cortadores de cana no Brasil, comparando-as com os carvoeiros do século 18 na Europa, por que não adotar os padrões trabalhistas da 1ª Revolução Industrial, com crianças de oito anos encarando o serviço pesado?

Seguindo a "brilhante" linha de raciocínio do deputado, poderíamos legalizar uma série de situações em que há um descompasso entre a lei e a realidade. Deixaríamos de ter, em um passe de mágica, a prostituição infantil, o trabalho escravo, o tráfico de seres humanos, fora preconceitos de raça, credo e classe. É só jogar por terra conquistas sociais obtidas na base do sangue e suor de gerações.

Russomano disse que "enquanto o jovem estiver ocupado, não terá tempo para se envolver em atividades ilícitas e nem de buscar no crime uma forma de sustento de suas necessidades básicas". Ótimo! E por que não ocupá-lo com educação, esporte, lazer?

É uma lógica bizarra, tacanha, de que a melhor educação é através do trabalho duro – o que não é verdade. O trabalho pode fazer parte da formação pessoal, desde que não afete o crescimento do indivíduo. Hoje, muitas empresas já empregam pessoas de 14 anos para fazer atividades de gente de 18. Usam como justificativa que treinam aprendizes, mas na verdade usam mão-de-obra barata. Imagine, então, com a anuência constitucional para baixar a idade?

Chega a ser patético um congressista que foi eleito devido à sua imagem de defensor do consumidor adotar esse discurso. A menos que, neste caso, ele esteja defendendo alguns consumidores de mão-de-obra que adorariam ver legalizadas suas práticas de exploração da infância.

Dessa forma, com menos tempo para se dedicarem a seu crescimento, as crianças serão adultas que saberão o seu lugar na sociedade e trabalharão duro para o crescimento do país, sem refletirem sobre seus direitos, sem criticarem seus chefes e governantes por péssimas condições de vida. Será que Celso Russomano diria que essa é uma situação em que tudo termina bem para ampas as partes?

Para ver a íntegra dessa aberração e checar sua situação de trâmite na Câmara dos Deputados, clique aqui.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.