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Leonardo Sakamoto

No Rio Grande do Sul, boi tem medo de dormir sozinho

Leonardo Sakamoto

21/08/2008 20h04

Auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego e procuradores do Ministério Público do Trabalho proibiram que empregados de fazendas dormissem junto com os animais durante a Expointer, uma das mais importantes feiras agropecuárias do mundo, realizada anualmente no Rio Grande do Sul. Creio que é desnecessário explicar o porquê da proibição (caso alguém ache normal dormir com o gado no curral, por favor pare de ler este post e mude de blog).

Houve revolta dos proprietários rurais e um deles, "doutor em direito e pecuarista", escreveu um artigo que está circulando na rede. Defende o sentido de "tradição".

Mas também eram "tradições" a possibilidade legal de comprar seres humanos (até 1888) ou a impossibilidade de mulheres votarem (até 1932). Muitas aberrações da humanidade foram – e são – justificadas por serem tradições, ou seja, indiscutíveis. Mas elas são apenas construções sociais, normalmente impostas ao longo dos anos pelos mais fortes até serem serem aceitas por determinado grupo sem que se lembre de onde ela surgiu.

Mas, ao final do seu artigo há uma dica de onde surgiu essa tradição: "São relevantes os custos adicionais em aluguel de trailers ou vagas em hotéis". Isso clareia bastante as coisas, não?

Vale conferir o texto e ver até onde vai o espírito humano para justificar o injustificável.

O sepultamento de uma tradição, por Fábio Luiz Gomes*

Notícia inusitada nos dá conta da proibição de os peões dormirem nos pavilhões dos animais durante a Expointer. É lamentável que tenham sido desconsiderados a tradição e o amor dos cabanheiros por seus animais, os riscos sanitários para estes, os custos para os expositores e a ausência de alternativa.

Sabidamente, os peões consideram-se mais donos dos animais que preparam durante um ano inteiro para este evento do que os proprietários dos mesmos. O cabanheiro e o animal por ele tratado conhecem-se pelo olhar; respondem aos sinais um do outro. Ao sacarem um campeonato, festejam e são mais festejados que os patrões. Lembro que ao morrer um dos meus grandes campeões fiquei extremamente chateado. Meu cabanheiro chorou.

Durante a feira, é comum que, dos mais de 2 mil animais, vários tenham febre por estresse e muitas fêmeas acabem parindo, não raro necessitando de auxílio pelo "trancamento" da cria, sob pena de morrerem ambos. Imagine-se o nervosismo e o cuidado do responsável pelo principal candidato ao Freio de Ouro, na noite anterior, preocupado com uma "cólica" ou com a maldade de um concorrente desleal. Isso para não se falar do congraçamento entre a peonada, noite adentro, entre "assados", "causos" e reminiscências dos anos anteriores.

Durante a adolescência, meu filho não abria mão de dormir no galpão, assim como eu o fazia ao acompanhar meu pai em uma "tropeada". O que se vê pretendido agora, ainda que em tese legalmente exigível, é sepultar e banir uma das mais antigas tradições do nosso Estado. Muito mais adequado seria aferir as condições nas quais a peonada passa o ano, e não acabar com a festa de cinco dias para a qual eles se preparam durante os outros 360.

São relevantes os custos adicionais em aluguel de trailers ou vagas em hotéis por parte dos expositores e a desistência de muitos de trazer seus animais. Mas o registro que se impõe é o lamentável sepultamento de uma tradição centenária e a tristeza dos destinatários da pretensa proteção. *Doutor em Direito e pecuarista.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.