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Leonardo Sakamoto

Em Belém, o calor continua

Leonardo Sakamoto

30/01/2009 00h53

Belém – O Fórum Social Mundial em Porto Alegre (edições de 2001 a 2003 e 2005) costumava ser quente. Mas a quentura gaúcha não chega aos pés do clima de Belém neste janeiro, de calor úmido que te abraça em boas vindas logo na chegada. As constantes trovoadas dão uma refrescada, mas hoje nem as chuvas foram capazes de garantir uma trégua.  O cinema montado na Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), um dos locais onde está sendo realizado o FSM, tornou-se refúgio para quem estava derretendo do lado de fora. Pelo menos uns dez splits de ar condicionado de alta potência faziam a alegria de uma galera que dormia no chão, sem se importar com o que passava na tela. Na sala de imprensa, montada dentro de um ginásio, alguns jornalistas repetiam o feito, dormindo ao som de frenéticas tecladas dos colegas de trabalho sob a benção de um ar condicionado.

Em uma das salas de debates em que participei, completamente lotada, pessoas em pé e sentadas no chão lançavam olhares de inveja sobre aquelas que cochilavam confortáveis em cadeiras devido ao calor. Com pouca roupa, grupos radicais pregavam em frente ao Acampamento da Juventude – local de acolhida com centenas de barracas de camping  – que o próprio evento era o problema: "O Fórum Social faz parte de um movimento que quer fragmentar o povo !"  O calor também provoca outras cenas inusitadas. Um amigo foi "assaltado" por duas pessoas hoje. O produto do furto: uma garrafa de água mineral. "Aí, tio, me dá essa garrafa agora e compra outra para você." Quem dizia que a água é o bem mais precioso que temos não estava errado.

Não me entendam mal, não sou marinheiro de primeira viagem na Amazônia – muito pelo contrário, a região já virou quintal de casa – nem exagero nas palavras. O problema é que percorrer a pé as longas distâncias entre as atividades, espalhadas pela Ufra e pela Universidade Federal do Pará, não é fácil. Eu, que estou longe de ser saudável, vou dormir  agora carregando uma fina dor de cabeça causada pelo calor e pelo choque térmico do entra e sai de locais com ar condicionado. Uma vez que carros comuns e táxis não podem entrar nos campi, o jeito é andar debaixo do sol escaldante ou apelar para bicicletas transformadas em moto-táxis. Três reais a corrida. Para quem tem que ir de um campus a outro, que não são muito distantes, outra alternativa são os barcos que fazem o trajeto por via fluvial. Perto do meio dia, gastava-se mais de uma hora de fila para poder embarcar. Sob o sol. Quando voltar, vou ter que justificar para a minha namorada como fiquei tão bronzeado sendo que fui trabalhar…

Falta talvez um ônibus circular. Ou uma melhor divisão dos eventos. Ouve-se com freqüência reclamações sobre a (des)organização do evento, atividades que são repentinamente trocadas, falta de sinalização, locais sem estrutura e por aí vai. Além, é claro, da chiadeira pela cobrança de taxa de R$ 30,00 para inscrição que teria limitado a participação dos moradores mais carentes da cidade. A presença ostensiva da polícia militar e da guarda nacional não combinam com o que o Fórum é e o que ele representa. Peguei táxis em que os motoristas entraram na onda da paranóia por segurança, alertando como um disco arranhado: "Vamos entrar em um bairro perigoso… Estamos passando por um bairro perigoso… Este é um bairro perigoso, não esqueça… Oooolha o bairro perigoso… Ainda bem que estamos saindo do bairro perigoso".  Parece city tour! Besteira. Perigoso mesmo são algumas grandes multinacionais instaladas neste estado e que demitem para reduzir o risco de diminuir os lucros.

É claro que tudo isso não ofusca o brilho de um encontro onde você tropeça em diversidade, conhecimento e cultura. No qual a acolhida e a esperança de pessoas e povos de vários cantos do mundo aquecem e recarregam as baterias. Nesse sentido, o Fórum é até mais quente que aqueles de Porto Alegre, pois parece maior. E, desse calor, não vale a pena se desvencilhar.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.