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Leonardo Sakamoto

No Carnaval da TV Digital, o povo ficou de fora

Leonardo Sakamoto

25/02/2009 08h55

Começou no Carnaval uma campanha de TV para promover os benefícios da TV Digital. Sob o nome de "Democracia Digital", o primeiro filme esclarece que o sistema é possível para todos, sem custo algum de mensalidade e com melhora significativa na qualidade de som e imagem. A campanha é de responsabilidade do Fórum do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre, que inclui empresas do setor de radiodifusão, indústrias de aparelhos de TVs, de recepção e de transmissão e algumas instituições de pesquisa.

É interessante como o processo de implantação da TV Digital no país, que vem sendo acusado há anos por setores da sociedade civil de ir no sentido oposto ao de democratizar as comunicações, usa agora essa bandeira para vender comercialmente a ideia. É aquela velha coisa: não importa que seja verdade, importa que pareça verdade.

Posto abaixo trechos de um texto da ONG Intervozes, referência em políticas de comunicação, publicado em dezembro de 2007 – logo após o início da tramissão digital no país. Descontando algumas atualizações de valores, ele continua atual. Vale a pena ler ouvir o outro lado do debate.

Em tempo: O conversor mais barato que encontrei em um site de loja regularmente instalada em São Paulo é de R$ 379,00. Mais de 80% de um salário mínimo. Deve haver aparelhos mais em conta e no futuro o valor de um conversor ou de uma TV com o sistema já instalado vai se tornar acessível a todos. Mas, hoje, deixar a entender que o acesso é universal é, no mínimo, propaganda enganosa. Isso sem contar o principal: para as empresas do setor democratizar é melhorar a recepção, mas nunca compartilhar a transmissão.

TV digital: oportunidade perdida para democratizar as comunicações

(…) 1.A implantação da TV digital terrestre no Brasil trazia o potencial de aumentar radicalmente o número de programações televisivas e, conseqüentemente, democratizar o principal meio de comunicação do país. Com uma maior capacidade de compressão de sinais, seria possível garantir espaço para aqueles que hoje estão ausentes da programação da TV, em especial às emissoras públicas e sem fins lucrativos, como as comunitárias e universitárias. Mas, infelizmente, essa não foi a opção do governo federal, que destinou às emissoras comerciais mais uma fatia do espectro, tornando o atual latifúndio um latifúndio improdutivo.

2.Essa entrega do espectro não se deu por meio de uma nova concessão, mas por consignação direta àquelas emissoras que já tinham concessões de TV aberta, já que a TV digital não foi considerada um novo serviço. Com isso, ela não passou pelo Congresso (como obriga a Constituição no caso das concessões) e ainda criou uma aberração, pelo fato de a TV digital possibilitar a oferta de outros serviços, como a multiprogramação ou recursos interativos. Perdeu-se também a oportunidade de impor obrigações às concessionárias, que seguem utilizando um bem público sem praticamente nenhuma obrigação em relação ao conteúdo transmitido. Na prática, reforçou-se o modelo concentrador e permissivo atualmente praticado nas concessões de rádio e TV.

3.Os recursos interativos, idealizados para tornarem-se um instrumento de inclusão social e digital num país onde menos da metade da população tem acesso à Internet também não se concretizarão, pelo menos nos próximos anos. Isso porque o governo federal não determinou que os conversores necessariamente tenham capacidade de processar os recursos interativos, nem implantou uma política para o uso de um canal de retorno a baixo custo, ambas questões fundamentais para incluir digitalmente a parcela da população sem condições financeiras de conectar-se à Internet por meio do pagamento de um serviço de banda-larga. Além disso, não há qualquer política para o desenvolvimento dos recursos interativos de interesse público (serviços de e-gov, e-banking, email, serviços de saúde e educação), deixando para que o mercado implante, de acordo com suas demandas e interesses, os futuros recursos interativos da televisão digital. Ou seja, além de desperdiçar a chance de democratizar a TV, o governo também jogou fora a possibilidade de incluir digitalmente milhões de brasileiros que hoje não têm acesso à Internet.

4.A mobilidade e a portabilidade prometidas também não devem se tornar realidade num futuro próximo. Isso porque as empresas de telefonia celular – que financiam ao consumidor os aparelhos – não têm interesse em embarcar nos telefones um chip de recepção do padrão japonês, que encarecerá o custo dos aparelhos e em nada agregará valor ao negócio destas empresas. Não à toa, desde 2005 executivos das Organizações Globo apostam na mobilidade a partir de um aparelho exclusivo para este fim.

5.Da mesma forma, ao contrário do que se prometeu durante a assinatura do acordo com os japoneses, não houve e nem haverá qualquer transferência de tecnologia para o Brasil. O acordo formal assinado entre os dois governos também não sairá do papel, pelo simples fato de que não constam, no acordo, obrigações, mas somente intenções de ambos os governos. Internamente, não houve qualquer esforço para a criação de uma política industrial compatível com as necessidades do país. Ou seja, a televisão digital brasileira não será aproveitada como mecanismo de indução do desenvolvimento industrial nacional, infelizmente.

6.O alto preço dos conversores também é fruto de opções equivocadas do governo federal, que decidiu pela adoção do padrão de modulação mais caro entre todos os disponíveis internacionalmente, como já apontavam as pesquisas financiadas pelo próprio governo. Muito menos buscou-se aproveitar o padrão de modulação desenvolvido nacionalmente, que poderia, por ser aberto e nacional, não acarretar no pagamento de royalties. Além disso, ao promover alterações no próprio padrão japonês (não com inovações nacionais, diga-se, e sim com outras tecnologias internacionais) sem a necessária articulação com outros países, tornou o padrão adotado no Brasil único no mundo, isolando o país e diminuindo a possibilidade de redução de preços a partir do aumento da escala de produção.

7.A propaganda feita em torno da Alta Definição (única real inovação da TV digital, e certamente a menos importante) não pode ser entendida como uma "conquista" para os brasileiros. Afinal, trata-se de uma evolução inerente a qualquer tecnologia digital. Mais do que isso, a Alta Definição em nada alterará o cenário concentrado e pouco plural da televisão e, além disso, forçará uma ocupação do espectro desnecessária, já que a maioria da população não assistirá a programação em alta definição. Em primeiro lugar, porque os conversores capazes de codificá-la não saem por menos de R$ 1.000,00. Segundo, porque, além de comprar este conversor, o consumidor deverá também comprar um televisor que não sai por menos de R$ 4.000,00. Terceiro, porque, caso deseje comprar um televisão HD com o receptor digital incluído, deverá gastar no mínimo R$ 8.000,00, todos estes valores estão longe da realidade da imensa maioria da população brasileira. Ou seja, ocupa-se mais espaço no espectro de freqüências para que poucos e abastados tenham o privilégio de assistir imagens em alta definição.

Em resumo, a televisão digital, mantidas as definições do Decreto 5.820, não trará novidades significativas ao modelo de serviços hoje adotado na radiodifusão. Ao contrário, tudo indica que o Brasil está a caminho de criar um apartheid televisivo, com uma qualidade de imagem para os mais ricos e outra para a maior parte da população brasileira.

Ou seja, a transmissão pode ser digital, mas infelizmente continua tudo igual.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.