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Leonardo Sakamoto

A moral da polícia se enforcou em um cadarço de sapato

Leonardo Sakamoto

27/05/2009 13h08

Durante a ditadura, os militares armaram uma farsa para encobrir o assassinato do jornalista Vladimir Herzog. A explicação trazida à público, de suicídio na cela, não convenceu e a morte de Vlado tornou-se símbolo na luta contra o regime.

"Nos quartéis lhes ensinam antigas lições", cantavam nos anos de chumbo. Mas bem que a música podia ser assobiada hoje na Vila Jacuí, Zona Leste de são Paulo, uma vez que o modus operandi da polícia no Brasil parece não ter mudado desde que os verde-oliva sentavam-se no Planalto.

Em São Paulo, um homem de 39 anos foi encontrado enforcado pouco mais de duas horas depois de ter sido preso. Supostamente, era traficante e transportava cocaína. Supostamente, teria se enforcado usando um cadarço de sapato. Questionado por jornalistas se não é praxe da polícia retirar os cadarços de sapatos de presos, um policial afirmou que o acusado usou um pedaço de papelão para arrastar um cadarço que estava fora da cela.

PELAMORDEDEUS! Nem os milicos que mataram Herzog foram tão caras-de-pau! Qual seria a próxima desculpa esfarrapada se essa não colasse? a) O rapaz recebeu um cadarço através de um pombo-correio? b) Ele levava um cadarço no estômago para ocasiões como essa? c) Como era um exímio tecelão, ele criou um cadarço a partir de restos de fios disponíveis no chão da cela?

Informados do ocorrido, familiares da vítima e moradores da Vila Jacuí realizaram um protesto na madrugada de hoje, armando barricadas, depredando dois ônibus e incendiando um terceiro. A manifestação foi dispersa pela tropa de choque da polícia militar. Pelo o que vi, a maioria das notícias veiculadas sobre o assunto chamavam os moradores de vândalos, mas não questionavam a polícia.

Não quero legitimar uma violência por outra, mas entendo muito bem a revolta desses moradores. Pelo histórico de parte de nossa polícia (tortura, mortes, desaparecimentos, corrupção, enfim), há uma grande chance desse jovem ter sido executado. Isso sem um julgamento, sem que as supostas provas do suposto crime tenham sido analisadas por um juiz.

(Os ignorantes vão dizer que bandido tem que morrer mesmo e vão citar um comovente caso familiar como justificativa técnico-científica para isso, pedindo olho por olho, dente por dente. Para esses, nem vou gastar o dedo digitando que nossa lei não prevê pena de morte, nem execução sumária e que o Estado é o responsável pela vida e saúde das pessoas sob sua custódia – apenas não levar essa tarefa muito a sério.)

Indo nessa toada de direitos para uns, deveres para outros vai chegar o dia em que as "hordas" (como ouvi serem chamados os excluídos em uma rodinha de conversa da elite paulistana) vão se rebelar. E não vai ficar apenas nos três ônibus e uma barricada. Com toda a razão.  

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.