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Leonardo Sakamoto

Anistia: Expansão agroindustrial reforçou pobreza no país

Leonardo Sakamoto

28/05/2009 02h12

Em relatório publicado hoje, a Anistia Internacional afirma que a violência contra os trabalhadores rurais sem-terra continuou no país, sendo praticada na maioria das vezes por "empresas de segurança privadas irregulares ou insuficientemente regularizadas, contratadas por proprietários de terras ou por milícias ilegais". Afirma também que "persistiram as expulsões forçadas, em muitos casos em total desconsideração aos devidos procedimentos legais". E destaca tentativas de criminalizar os movimentos que apóiam os trabalhadores em sua luta para proteger a terra e para assegurar a reforma agrária, como as pressões de promotores e policiais militares no Rio Grande do Sul contra integrantes do MST.

Sobretudo, é categórico em apontar alguns responsáveis por esse processo:

"A expansão agroindustrial e projetos de desenvolvimento governamentais e privados reforçaram a discriminação social e a pobreza que há décadas afetam as comunidades rurais. Os direitos humanos e constitucionais dessas comunidades foram regularmente desconsiderados, seja pela falta de acesso à Justiça e a serviços sociais, seja por violência e intimidação das empresas de segurança privadas irregulares que defendem interesses econômicos poderosos."

Já comentei aqui neste espaço que o direito à propriedade de terras não é mais importante que o direito à vida ou à sobrevivência. Nem de longe. Ocupar fazendas improdutivas ou que não cumprem sua função social é uma ação legítima dos trabalhadores, que não seria necessária se o Estado cumprisse esse dever, obedecendo à Constituição. Concordando ou não com as ocupações, a verdade é que como há vácuo de ações públicas espontâneas, por interesse, incompetência ou incapacidade, é graças a essa pressão da sociedade civil que a reforma agrária tem sido realizada no país e que grileiros têm sido descobertos.

A fim de defender suas terras das ações de movimentos sociais ou ampliar seus domínios, proprietários de terra de Norte a Sul do país têm criado seus exércitos particulares. Chacinas de sem-terra, indígenas, ribeirinhos, quilombolas são cometidas por esses exércitos, que atuam para extirpar essas ervas daninhas indesejáveis. As milícias não são coisa nova. Mas é revoltante saber que no século 21 latifundiários continuem achando que podem ceifar vidas para manter ou ampliar sua pilhagem.

Para quem reclama (respaldado em centenas de casos deprimentes) que a Câmara dos Deputados não se preocupa com o interesse público e que é guiada apenas por uma agenda de interesse próprio ou de certas elites, a notícia é um alento. Há um projeto de lei tramitando na casa que propõe o confisco de terras onde for comprovada a formação de milícias armadas. A proposta, do deputado federal Ivan Valente (Psol-SP), também inclui o confisco de bens de valor econômico da propriedade, destinando-os para as políticas de segurança pública e à reforma agrária. Armas e munições seriam encaminhadas às forças armadas.

A relação carnal que se estabelece entre o patrimônio público e a propriedade privada nas regiões de expansão agrícola é um problema de difícil solução. Muito similar ao que se enraizou com o coronelismo nordestino da Primeira República, o detentor da terra exerce o poder político, seja através de influência econômica, seja através de coerção física. O já tênue limite entre as duas esferas se rompe. Não é raro membros da administração municipal serem, ao mesmo tempo, gerentes de fazendas. Ou policiais serem contratados como jagunços.

Em 2007, houve dois casos preocupantes envolvendo formação de milícias. Em outubro, surgiram notícias de que fazendeiros do Pará estariam formando um caixa para contratar "vigilância particular" com o objetivo de impedir ações que atentassem contra as suas propriedades. A informação foi dada por um deputado federal ligado aos produtores rurais paraenses em reunião da bancada do Pará no Congresso Nacional com a governadora do estado. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, o Pará está entre os estados que possuem os mais altos índices de violência contra trabalhadores rurais e de assassinatos em conflitos agrários do país. Ao mesmo tempo, é campeão em número de libertações de trabalhadores em situação de escravidão.

Movimentos sociais acreditam que, na prática, vigilância particular significa a construção de exércitos particulares para proteger as fazendas reivindicadas para a reforma agrária, em sua maioria griladas, ou seja, roubadas do patrimônio público, improdutivas ou que não cumprem sua função social. Parte dos deputados que estavam na reunião demonstrou indignação perante a informação também afirmando que isso é, na prática, formação de milícias privadas e organização de pistolagem. A ação também se estenderia para Goiás e Tocantins. Não seria a primeira vez (e infelizmente, nem a última) que isso aconteceria.

Em 21 de outubro daquele ano, Valmir Mota de Oliveira, dirigente do MST, foi assassinado durante ocupação de propriedade da multinacional Syngenta Seeds. De acordo com testemunhas, cerca de 25 homens que vestiam coletes da NF Segurança, contratada pela empresa, desceram de um ônibus e dispararam contra os militantes (outros seis ficaram feridos e um segurança morreu. A empresa de segurança foi indiciada por homicídio e formação de quadrilha no caso).

"A Syngenta assassinou com sua milícia armada um trabalhador rural e deixou mais seis feridos, e segue ameaçando a nossa biodiversidade com experimentos transgênicos ilegais. Queremos essa empresa fora do Brasil", afirmou Roberto Baggio, da coordenação nacional da Via Campesina. A Justiça Federal decidiu que as atividades desenvolvidas pela Syngenta em Santa Tereza do Oeste, na área de amortecimento do Parque Nacional do Iguaçu, eram ilegais, confirmando multa dada pelo Ibama. Segundo decisão da juíza Vanessa de Lazzarin Hoffman, a produção de organismos geneticamente modificados em zona de amortecimento de unidade de conservação pela Syngenta desrespeita a lei.

Ou seja, cadeia para quem mata, expulsa e fere é fundamental. Mas uma boa pancada no bolso da parcela do agronegócio envolvida também produzirá bons resultados.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.