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Leonardo Sakamoto

Tocantins: políticos se esbaldam com terra quase de graça

Leonardo Sakamoto

23/07/2009 10h20

Que tal comprar uma área equivalente a um campo de futebol por menos de R$ 8,00? Difícil? Pois saibam que políticos do Tocantins receberam essa benção. Mas, enquanto isso, os pobres que moram nessa região não tiveram direito ao mesmo milagre: passam fome e vivem na rua da amargura.

A propaganda do agronegócio associa a expansão acelerada da soja à prosperidade. Os problemas são os fatos, que não escondem os problemas socioambientais vinculados à atividade. Uma dessas chagas atende pelo nome de Projeto Agrícola Campos Lindos, no Nordeste do Tocantins, a 491 km da capital Palmas (TO). O empreendimento, que este ano completou uma década e exporta milhares de toneladas do grão todos os anos, é resultado de dois contestados processos de "titulação" pública, não teve licença ambiental para se instalar, foi palco de trabalho escravo e desalojou famílias tradicionais que hoje padecem com índices vergonhosos de pobreza.

Após meses de investigação, a Repórter Brasil está publicando uma série de reportagens sobre um projeto que enche os bolsos de políticos importantes, como a senadora Kátia Abreu (DEM-TO), presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA), e empresas multinacionais da soja. E torna mais pobres os já pobres moradores da região. Destaco abaixo alguns pontos.

Campos Lindos, na divisa com o Maranhão, é o campeão estadual de exportações, tendo como principal produto a soja. Em 2008, as vendas externas da localidade somaram US$ 78,5 milhões, mais de um quarto (26,4%) de tudo o que saiu do estado para fora do país em 2008. Aliás, a prevalência do comércio do grão em âmbito estadual é surpreendente: a cada US$ 10 exportados pelo Tocantins, US$ 8 dizem respeito à soja. Essa "explosão" foi aditivada, em grande medida, pelo Projeto Agrícola Campos Lindos, instalado a partir do final dos anos 1990.

Criado no papel em 1989 e instituído na prática em 1993, Campos Lindos (TO) está no topo de outro ranking. A localidade ocupou o primeiro posto absoluto entre todos os municípios do país no Mapa de Pobreza e Desigualdade, divulgado no final do ano passado. O mesmo IBGE, que mede a produção, também cruzou dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2002-2003 com o Censo 2000 e revelou que 84% da população de Campos Lindos vivem na pobreza. Mais grave: 62,4% dos moradores estão na extrema indigência, ou seja, não ingerem o mínimo de calorias diárias para sobreviver.

Em 1999, a seleção de 47 contemplados para o Projeto Agrícola Campos Lindos foi feita pela Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Tocantins (Faet), com apoio da Companhia de Promoção Agrícola (Campo). A Campo foi fundada em 1978 como fruto do acordo entre consórcios para a implantação do Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados (Prodecer), em parceria com o Banco do Brasil e com cooperativas de produtores.

Sem cerimônias, representantes da Faet e da Campo se autobeneficiaram com o Projeto Agrícola Campos Lindos. A hoje senadora Kátia Abreu (DEM-TO), à época presidente da Faet e atualmente à frente da Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), ficou com um lote de 1,2 mil hectares e seu irmão, Luiz Alfredo Abreu, com outro de mesma dimensão. O presidente da Campo, Emiliano Botelho, foi agraciado, com um lote ainda maior: 1,7 mil hectares. Pessoas próximas ao então presidente do Itertins, Nelito Cavalcante, também foram atendidas com lotes. A Repórter Brasil entrou em contato com o Itertins para ouvir o órgão sobre o turbulento processo de "titulação" do projeto agrícola, mas não obteve resposta.

A senadora Kátia Abreu (DEM-TO), presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), declarou com valores bastante inferiores aos de mercado dois terrenos no município de Campos Lindos, Tocantins, nas eleições ao Senado em 2006. Um dos lotes, com 1.268,84 hectares, foi estimado por ela em R$ 10.075,35 mil em declaração à Justiça Eleitoral. Segundo consultas a imobiliárias que atuam na região da fazenda, um terreno assim custaria de centenas de milhares a milhões, dependendo da avaliação. Mas nunca R$ 7,94 o hectare (que dá para comprar três litros de óleo de soja aqui em São Paulo). Questionamos a senadora sobre a sua participação no projeto agrícola e não obtivemos uma resposta.

A lista dos beneficiados pelo projeto deflagrado pelo ex-governador Siqueira Campos é reveladora. Inclui o ex-ministro da Agricultura do governo Itamar Franco, Dejandir Dalpasquale, que presidiu a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), e Tiago Turra, filho de outro ex-ministro da Agricultura (Francisco Turra, do governo Fernando Henrique Cardoso), que já deu declarações públicas de que não chegou a se apossar do terreno. Casildo Maldaner, ex-senador e ex-governador de Santa Catarina pelo PMDB, também foi brindado com um lote, mas não mantém o negócio. O brigadeiro Adyr da Silva, ex-presidente da Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer), e uma série de políticos da região – José Wellington Martins Belarmino, de Pedro Afonso (TO), e Jonas Demito, de Balsas (MA) – também foram contemplados neste início. Não foram esquecidos grandes produtores e personalidades públicas do Sul do país – como João Carlos Di Domenico e Vilibaldo Erich Schmid, de Campos Novos (SC) – e de Minas Gerais – João Benício Cardoso e Eurípedes Tobias, de Paracatu (MG).

Outros dois figurões foram atendidos: Assuero Doca Veronez, atual presidente da Comissão de Meio Ambiente da CNA e dirigente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Acre (Faec), e o empresário Carlos Alberto de Sá, de Brasília (DF), dono da Voetur, agência de turismo envolvida em diversas denúncias de irregularidades. Segundo fontes consultadas, Carlos Alberto comprou vários outros lotes do Projeto Agrícola.

"O projeto foi criado de forma arbitrária", avalia o procurador Álvaro Manzano, do Ministério Público Federal do Tocantins (MPF/TO), que condena os valores "irrisórios" pagos pelos políticos e o trâmite "irregular" de transferência das terras cobertas atualmente por soja. Ele e outros três procuradores da República entraram com um pedido de intervenção federal no Tocantins, em outubro de 2003, com base na conduta imprópria dos Poderes Judiciário e Executivo do Estado, relativa ao Projeto Agrícola Campos Lindos.

Para ler a primeira das reportagens de Maurício Hashizume e Jane Cavalcanti, clique aqui.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.