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Leonardo Sakamoto

Em SP, pobre é despejado por canetada cultural

Leonardo Sakamoto

18/11/2009 12h10

Pedi para o consultor cultural, advogado e músico Guilherme Varella escrever sobre o despejo da Vila Itororó, tema que ele acompanha há um bom tempo e que mostra como funciona a política cultural na maior cidade do país. Que chuta quem não tem nada para beneficiar quem já tem muito. Guilherme também tem um blog, que merece ser visitado.

O despejo da Vila Itororó: que interesse "público" tem a prefeitura com isso?

A Prefeitura de São Paulo pretende construir um grande centro cultural na Vila Itororó, uma vila centenária no coração do Bexiga. A ideia é levantar um espaço para apresentação de espetáculos de música, teatro, dança e preservar o patrimônio histórico local. Muito bonito se o projeto não implicasse em desalojar todos os seus habitantes, sem qualquer garantia de novas moradias nem da preservação da memória dos que moram lá. São 77 famílias residentes, a maioria morando na Vila há cerca de 30 anos. Algumas há mais de 60.

Os moradores estão prestes a perder suas casas, desde que foi concedida a liminar da imissão na posse, no dia 04 de agosto desse ano. A ação de usucapião, movida paralelamente pelos moradores para que tenham direito a suas casas, não foi considerada pelo desembargador que, na prática, concedeu uma ordem de despejo. Sem estar acertada qualquer indenização. Ou seja, a qualquer momento, a Prefeitura de São Paulo, em nome do sentido público, da cultura e do patrimônio, pode por todas essas pessoas para correr. Afinal de contas, que cultura, que patrimônio e que sentido público todas elas representam?

Se considerarmos o fundamento do último acórdão do TJ de São Paulo, nenhum. "Em razão da prevalência do interesse público sobre o particular, o processo de desapropriação não deve ser suspenso" (TJSP- 17/08/09). O projeto de um centro cultural na Vila Itororó é parte da política cultural da prefeitura e governo de São Paulo, baseada na construção de grandes teatros e casas de espetáculo no centro da cidade, e segue também as diretrizes da política urbana dessa gestão. Alinham-se o deslocamento da população carente que reside na região central – a chamada "higienização social" – e a implementação de medidas que valorizem o espaço para que as camadas mais altas da sociedade possam freqüentá-lo, como a construção desses aparelhos culturais.

Modelo dessa política é a chamada Nova Luz. A exemplo do que vem ocorrendo na Vila Itororó, para a construção do maior de teatro de dança do país na região da Luz o Estado de São Paulo desapropriou prédios abandonados e ocupados pela população e uma antiga rodoviária que sediava um comércio popular, e deslocou os moradores de rua do local. Tanto na Vila Itororó quanto na Nova Luz, a finalidade histórica da região e toda a população que ali mora e trabalha não são incorporados nos projetos.

A Vila – A Vila Itororó é uma construção de 1920, na rua Martiniano de Carvalho, entre o Bexiga e a Bela Vista. Construído pelo imigrante português Francisco de Castro, o prédio recebeu esse nome por estar localizado na nascente do antigo Rio Itororó. Sua arquitetura é peculiar, objeto de estudos científicos em arquitetura e urbanismo. Foi erguida com restos de materiais de um antigo teatro que havia sido demolido na região e foi a primeira casa com piscina na cidade de São Paulo, motivo para agregar a comunidade local em seu entorno.

Tombado pelo CONPRESP (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo), o conjunto possui 37 casas interligadas por um pátio, com a piscina no centro, num espaço de 4,5 mil metros quadrados. Foi declarada de utilidade pública em 2006, quando se iniciou o processo de desapropriação em face da Fundação Leonor de Barros Carvalho. A Fundação, que administrava a Vila e cobrava o aluguel dos moradores, abandonou-a completamente desde 1997. A partir de então, coube aos moradores a preservação do local, sem qualquer apoio público.

O aspecto histórico embasa e demanda a ação de preservação do patrimônio cultural constituído pela Vila. Contudo, o projeto de construção do centro cultural, como está posto, exclui a sua população, historicamente ligada à região.

Despejar para o interesse público? – Para a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Raquel Rolnik, é necessário que um projeto cultural como esse seja compatível com a questão habitacional. Relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o direito à moradia adequada, ela afirma ser possível a concepção de um projeto que una a finalidade cultural à permanência dos moradores.

De acordo com Raquel, "há um erro estratégico em se construir um centro cultural num lugar que já é um centro cultural. Construir algo ali, eliminando sua população, é desconsiderar toda a diversidade étnico-cultural existente, a convivência cultural estabelecida e a grande produção cultural historicamente realizada nesse importante espaço do Bexiga". A dificuldade, entretanto, está na falta de diálogo com a prefeitura. Desde o início do processo de desapropriação, em 2006, nunca houve uma audiência para a tentativa de compatibilização dos projetos de modo a manter os moradores no local. Tampouco para uma explicação acerca da finalidade do projeto e da solução para o problema da perda das casas.

A prefeitura trata a Vila Itororó como uma invasão ou uma ocupação. Entretanto, todos os moradores sempre pagaram aluguel à fundação proprietária, que abandonou a administração e o cuidado com o espaço. Assim como a prefeitura, que desde a declaração de utilidade pública, nunca mais destinou recursos para conservar o local. Atualmente, um grupo de extensão da Faculdade de Direto da USP – o Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU) -, sob orientação do professor Celso Fernandes Campilongo, e com o apoio dos moradores da Vila, tenta reverter a decisão de desapropriação na justiça. No entanto, todos os recursos tem sido rejeitados.

Essa situação retrata bem a visão de cultura da Prefeitura de São Paulo. E a noção de interesse público que, em alguns casos, tem a Justiça brasileira. A intenção da prefeitura é despovoar a Vila Itororó para atender a um interesse público por cultura. Claramente, o interesse do público A. Porque o interesse dos moradores da Vila – ou público C, D e E – pode ser dispensado. Por uma canetada cultural.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.