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Leonardo Sakamoto

Por peitos e bundas na São Paulo Fashion Week

Leonardo Sakamoto

22/01/2010 09h36

O sistema de endividamento das meninas que vêm tentar a sorte em São Paulo como modelos lembra muito o aliciamento que leva trabalhadores rurais a serem escravizados em fazendas e carvoarias do interior do país. No caso delas, os custos de transporte e hospedagem são bancados pelos contratadores das Agências, que depois descontam a dívida dos primeiros cachês que elas receberem. Há casos que as meninas não fazem sucesso e voltam para casa de mãos vazias.

Não estou igualando as condições das modelos de 15 anos a dos trabalhadores rurais escravos. Mas a comparação serve para mostrar que parte do mundo da moda descumpre claramente a legislação trabalhista ao adotar esses métodos. E com a anuência de uma sociedade que enxerga na mercantilização de suas crianças uma possibilidade de ascensão social.

Posto, abaixo, texto retirado do blog da jornalista, cientista política e ativista pelos direitos das mulheres Maíra Kubik Mano sobre o culto ao esqueletismo no mundo da moda, que serve a um propósito: fazer dinheiro.

Por peitos e bundas na São Paulo Fashion Week
(Uma blogueira feminista defendendo mais bunda e mais peito? Que ironia!)

Em tempos de discussões inflamadas sobre direitos humanos, não é só o autoritarismo da ditadura militar brasileira que deveria entrar em pauta. Exemplos de violação não faltam nos dias atuais: tráfico de seres humanos, trabalho escravo no campo, extermínios comandados pela PM do Rio de Janeiro e… – por que não? – a São Paulo Fashion Week.

Afinal, as modelos da edição 2010 estão absolutamente esqueléticas. Magras de doer. Só o osso, como se diz por aí.

Mas esse tempo já não tinha passado?

Bem, é verdade que há três ou quatro anos um movimento contra a anorexia e a bulimia ganhou as passarelas de todo o mundo e, de fato, conseguiu reverter essa tendência nada fashion de mulheres cadavéricas. Porém, segundo as agências, isso já é muito "last season", démodé. De volta, então, ao cemitério!

Se havia alguma preocupação, tanto com a saúde física e psíquica das modelos, quanto com o ideal de beleza que os desfiles passavam para a sociedade, isso durou pouco. Antes, ouvia-se dizer que algumas grifes mantinham balanças nos bastidores e pesavam todos e todas um pouco antes dos holofotes, para evitar que pessoas magras demais entrassem na passarela. Hoje, porém, não há nem sinal disso. "Culpa da semana de moda de Paris", dizem.

O resultado, já conhecemos: quem entra num manequim 36 é considerada muito "acima" da média. E, assim, ficamos sabendo que existem profissionais com um Índice de Massa Corpórea (IMC) semelhante ao de crianças de nove ou dez anos.

Sim, eu sei, a maioria delas mal saiu da infância. Pior ainda, pois além de não ter muita experiência para discernir o que é a importância do sucesso profissional versus a manutenção da saúde, estão em fase de crescimento, o que significa deveriam estar comendo ao invés de vomitando.

O editor de moda do jornal Folha de S. Paulo, Alcino Leite Neto publicou hoje, junto com a jornalista Vivian Whiteman, um artigo corajoso, denunciando a falsidade de opiniões em torno da questão: "uma rede de hipocrisia se espalhou há anos na moda, girando viciosamente, sem parar: os agentes de modelos dizem que os estilistas preferem as moças mais magras, ao passo que os estilistas justificam que as agências só dispõem de meninas esqueléticas. Em uníssono, afirmam que eles estão apenas seguindo os parâmetros de beleza determinados pelo "mercado" internacional – indo todos se deitar, aliviados e sem culpa, com os dividendos debaixo do travesseiro". Faço minhas as palavras dele, que conclui o texto dizendo: "o filósofo italiano Giorgio Agamben escreveu que as modelos são 'as vítimas de um deus sem rosto'. É hora de interromper esse ritual sinistro. É hora de parar com essas mistificações da moda, que prega futuros ecológicos, convivências fraternais e fantasias de glamour, enquanto exibe nas passarelas verdadeiros flagelos humanos".

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.