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Leonardo Sakamoto

África do Sul, Brasil e a justiça com as próprias mãos

Leonardo Sakamoto

05/04/2010 08h55

A mídia vem divulgando as repercussões da morte de Eugene Terreblanche, fazendeiro e líder branco de extrema direita, que jogou gasolina em cima das tensões raciais na África do Sul. Ele foi encontrado assassinado, em sua cama, com golpes de facão e de canos. O presidente Jacob Zuma repudiou o crime e pediu calma, mas os colegas de Terreblanche, do Movimento de Resistência Afrikaner, prometeram vingança. Insinuaram, inclusive, criar problemas para a Copa do Mundo que começa em junho no país. Fábio Zanini, correspondente da Folha de S. Paulo na África, que possui um dos melhores blogs que conheço, lembra que o assassinato vem em um momento delicado nas relações raciais no país. A maioria quer a paz, mas sempre há gente de ambos os lados buscando o contrário.

Bem, é claro que Eugene era um racista, defensor da risível superioridade branca e do apartheid, quando comandou milícias ornamentadas por um símbolo semelhante à suástica nazista. Ou seja, um completo idiota.

Contudo, justiça com as próprias mãos não é a saída, pelo contrário, dão a partida em um movimento de tomaladacá difícil de ser parado, abastecido com ódio e raiva reprimido de ambos os lados. O crime, ao que parece, não foi motivado (diretamente) por razões política: dois trabalhadores rurais, de 15 e 21 anos, teriam brigado com Terreblanche por ele ter se recusado a pagar o salário de R$ 70,00 e os agredido física e verbalmente. Ambos estão presos.

Isso me faz lembrar de uma história que me contaram no Sul do Pará anos atrás. Um pecuarista, que já havia sido flagrado com trabalho escravo, deixou de pagar pela enésima vez o salário de seus empregados. Que, enfim, resolveram se rebelar: fizeram uma emboscada na porteira e, quando ele chegou, deram cabo da sua vida ali mesmo, a golpes de foices e enxadas. Uns podem considerar o caso como vingança. Eu vejo uma saída idiota.

Sabemos da dificuldade de levar um tipo desses a julgamento e, estando lá, de conseguir uma condenação real por seus crimes. Mas creio que todos os que lutam para que os direitos humanos não sejam um monte de palavras bonitas emolduradas em uma declaração sexagenária não se sentem contemplados com o passamento de Terreblanche, do fazendeiro do Sul do Pará, ou mesmo de figuras folclóricas como Augusto Pinochet, Suharto, Erasmo Dias, Coronel Ubiratan, e tantos outros que se foram antes de responder pelo que fizeram. Não quero uma saída "Nicolas Marshall", de justiça com as próprias mãos. Quero apenas que a justiça funcione. Ou, no mínimo, que a sociedade consiga saldar as contas com seu passado, revelando-o, discutindo-o, entendendo-o. Para evitar que ele aconteça de novo. Isso passa por pressionar a Justiça, através de canais nacionais e internacionais, fazendo com que essa instituição funciona a favor de pobres e ricos, em qualquer lugar.

Em muitos casos, esses falecidos arautos do retrocesso, que não responderam em vida diante da sociedade, passam com a imagem de heróis por seus seguidores, não importa quem sejam. Sua morte, matada ou morrida, apenas abre mais uma brecha para que o monopólio da violência, que deveria ficar nas mãos do Estado, seja repartido por outros descontentes, criando um monstro difícil de ser controlado.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.