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Leonardo Sakamoto

Cana, carbono e chicote na carne do cortador

Leonardo Sakamoto

23/05/2010 02h35

Tratei desse assunto em um seminário e achei interessante retomá-lo aqui. No começo do ano, a Petrobras, gigante brasileira do setor de combustíveis, inaugurou a primeira usina termelétrica do mundo movida a etanol. A Usina Termelétrica Juiz de Fora, em Minas Gerais, que na verdade já existia, foi reformada e convertida para operar tanto com gás natural quanto com o combustível renovável. Com a queima de um combustível renovável para a geração de eletricidade, a Petrobras acredita que colabora para baixar as emissões de gases causadores do efeito estufa – idéia já vendida nas campanhas de marketing da estatal. Se comprovados os benefícios, a empresa deve ganhar dinheiro com a negociação de créditos de carbono no mercado internacional, por meio do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL).

O exemplo da Petrobras é apenas um dos que podem ilustrar como o setor de agrocombustíveis está se tornando o centro das iniciativas brasileiras de gestão ambiental através de mecanismos financeiros. Uma estimativa divulgada no ano passado pela Associação Brasileira das Empresas do Mercado de Carbono (Abemc), que reúne 50% dos créditos de carbono gerados no país, apontava que a maioria dos projetos de MDL aprovados no Brasil eram iniciativas de cogeração de energia em usinas de açúcar e etanol.

A crise financeira internacional e a restrição do crédito afetaram os negócios de carbono. Em 2009, foram aprovados apenas 17 projetos no país, o equivalente a apenas 2% do total mundial. Em 2008, haviam sido 34 projetos, correspondentes a 9% das aprovações no mundo. De acordo com a ABEMC, uma série de fatores serviu para reduzir o número de MDL no Brasil: a falta de compreensão quanto ao funcionamento do mercado de carbono, a ausência de um regime tributário específico, os riscos regulatórios e a falta de definição da natureza jurídica dos Certificados de Emissão Reduzida (CERs). Além disso, a extensão de mecanismos previstos no Protocolo de Quioto para além de 2010 traz incertezas para os investidores.

O fato é que, com ou sem um mercado de carbono bem desenvolvido, o Brasil obviamente necessita que o setor financeiro assuma iniciativas muito mais amplas do que as previstas no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo. Primeiro, porque os problemas ambientais do mundo não estão ligados apenas às emissões de gases do efeito estufa. Questões como a perda de biodiversidade e a poluição das águas nem sempre são consideradas nas ações mitigadores de novos projetos empresariais, sobretudo aqueles oriundos do setor agroindustrial. Segundo, porque o mercado de carbono, ao incentivar o setor sucroalcooleiro brasileiro apoiando a atividade de cogeração, faz vistas grossas para uma série de impactos socioambientais causados pela cadeia produtiva da cana-de-açúcar (ah, os efeitos colaterais…) – superexploração do trabalho e escravidão contemporânea são dois exemplos que aparecem constantemente no noticiário.

Do jeito em que está, a gestão ambiental a partir de mecanismos de mercado, no caso do setor canavieiro do Brasil, pode trazer danos consideráveis a biomas e à biodiversidade se não houver uma discussão profunda sobre quais modelos estão sendo incentivados e quais os danos que eventualmente possam estar sendo causados pelos elos da cadeia produtiva. Do que adianta ganhar de um lado, se perde-se muito do outro?

No caso da cana-de-açúcar, diversos setores da sociedade civil brasileira, entre movimentos sociais, ONGs e acadêmicos, além de setores do governo federal e do Congresso Nacional têm feito críticas ao aumento desmesurado do cultivo para atender ao aumento da demanda por etanol. Sem critérios rígidos, a expansão canavieira pode reduzir o ânimo para o plantio de culturas alimentares e incentivar o desmatamento através do deslocamento de outras atividades agropecuárias. Gerar uma substituição de foco da comida ao combustível, ainda que indiretamente, pode trazer ganhos de curto prazo, mas provocará uma bela dor de cabeça à medida em que o tempo avança e a população começa a reclamar. Se for esse o modelo apoiado pelos investidores, boa sorte para nós.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.