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Leonardo Sakamoto

Ruralistas: o inimigo do meu inimigo é meu amigo

Leonardo Sakamoto

24/06/2010 12h04

Em artigo na Folha de S. Paulo de hoje, Kátia Abreu, senadora pelo Tocantins (DEM) e presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), elogiou Aldo Rebelo (PC do B-SP) por sua "coragem moral" como relator do projeto do Novo Código Florestal, exaltando o seu nacionalismo, sua autoridade, sua incorruptibilidade (como ela sabe disso é que eu não sei…) e sua racionalidade ao criar o diálogo entre o meio ambiente e a agropecuária.

Bem, conforme já discutido aqui anteriormente, se aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente da República, o novo Código vai legalizar e incentivar a produção não sustentável e rifar a qualidade de vida das futuras gerações. Aldo conseguiu algo raro: a imensa maioria dos veículos de comunicação, das mais diferentes orientações ideológicas, escreveram editoriais descascando a sua proposta. Quase uma unanimidade.

Mas o artigo me fez pensar: será que Aldo não se incomoda nem um pouco em ser elogiado dessa forma e por esses motivos pela digníssima senadora? Ou, melhor: será que os eleitores de Aldo (os antigos, não os novos) não se incomodam nem um pouquinho? O deputado não deve gostar de ser incluído como membro da bancada ruralista, mas o texto de Kátia, ao alinhar as visões de mundo da principal líder ruralista no Congresso com as dele (afinal, ninguém escreve um artigo elogioso porque discorda da pessoa) faz o favor de colocar ambos no mesmo plano político. Se não pelo comportamento pró-ativo, pelo menos pela reatividade do deputado a esses temas.

No livro "A Arte da Conversação", Peter Burke explica que o senso de identidade é sempre "reativo", ou seja, uma reação ao contato com o outro e a ameaça de se perder no meio dele. A identidade, dessa forma, serviria como autodefesa do conjunto de manifestações culturais e da manutenção de um povo. "Os ritos também podem ajudar a definir a identidade de um grupo, não só pela exclusão de não-membros de participação, mas também por ataques simbólicos aos inimigos da comunidade." E o que os ruralistas mais elegeram nos últimos tempos foram inimigos do progresso agropecuário. Da mesma forma, há uma resistência e até uma sobrevalorização dos líderes rituais tradicionais em detrimento às figuras impostas pelos invasores. Ou, neste caso, a criação de uma nova liderança (Aldo?) e as boas novas que ela traz, em torno do qual se junta a comunidade.

Outra importante manifestação de identidade coletiva é a língua. Tanto o reconhecimento da semelhança quanto da alteridade pode se dar através da utilização ou não da mesma língua ou dialeto. Ou do compartilhamento de um mesmo grupo de significados: eu te entendo, você me entende. Falamos a mesma coisa: desenvolver de forma sustentável serve aos interesses internacionais e não aos nossos interesses econômicos. Então, derrube, queime, invada.

Da mesma forma que a consciência de identidade é construída em situações de conflito e contato, os signos de identidade tornam-se signos somente quando uma outra pessoa tenta eliminá-los ou forçar um ajuste ao seu modelo. Segundo Burke, um importante fator no estudo da identidade coletiva é a "memória social", uma imagem do passado de um grupo que é compartilhada pelos membros desse grupo. Quem fomos depende de quem somos, mas quem pensamos que fomos depende de quem pensamos ser (difícil, né?). Essa busca é guiada e canalizada pela necessidade de construção do sentimento de grupo e tem um papel importante na afirmação de solidariedades. Usando esse discurso, mesmo aqueles que não fazem historicamente parte da classe dos grandes proprietários rurais têm se unido em torno de sua bandeira política. Os pequenos são inseridos através do discurso das dificuldades existentes hoje para produzir e de um passado comum que, de fato, nunca existiu.

Cornelius Castoriadis, em a "Instituição Imaginária da Sociedade", ao tratar da idéia de grupo e da coletividade no âmbito do papel das significações sociais imaginárias, afirma que cada um se define e é definido pelos outros em relação a um "nós". Esse "nós" é antes de mais nada um símbolo, uma insígnia de existência. "Esse significante remete a dois significados, que reúne indissoluvelmente. Ele designa a coletividade em questão, mas não a designa como simples extensão, ele a designa ao mesmo tempo como compreensão, como alguma coisa, qualidade ou propriedade." Por exemplo, somos produtores rurais, somos ruralistas. Essa designação não adota função exclusivamente racional. "Ao contrário, para as coletividades históricas de outrora, constatamos que o nome não se limitou a denotá-las, que ele as conotou ao mesmo tempo – e esta conotação, liga-se a um significado que não é nem pode ser real, nem racional, mas imaginário", explicou o intelectual de nome difícil e de idéias complicadas.

Ao mesmo tempo adquire força a instituição que coloca a coletividade no plano da existência, que garante a sua permanência e que responde à natureza de sua identidade referindo-se a símbolos que a ligam a uma outra "realidade". A idéia de um "inimigo externo" acaba por auxiliar no surgimento de um sentimento de grupo e na formulação de uma identidade grupal. Principalmente, faz com que barreiras sejam derrubadas na busca pela solução de antigos conflitos para juntar forças frente ao novo problema. Coisa que os ruralistas têm feito cada vez mais.

Em suma, Aldo pode até não gostar de andar de mãos dadas com Kátia. Mas tendo adotado o mesmo discurso e o mesmo inimigo comum, ou seja, o desenvolvimento sustentável, eles agora são um só. Com a benção de setores do governo e da oposição.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.