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Leonardo Sakamoto

O Ficha Limpa vai funcionar no país da desigualdade?

Leonardo Sakamoto

29/07/2010 13h31

O candidato a vice-governador de São Paulo pelo Psol teve a candidatura impugnada por usar um veículo da Câmara de São Bernardo do Campo para apoiar a ocupação de um terreno quando era vereador do município em 2003. Ele foi condenado em segunda instância pelo Tribunal de Justiça de São Paulo por improbidade administrativa (acórdão número 395.977.5/3-00) tendo seus direitos políticos cassados por cinco anos.

O caso é polêmico. O partido diz que o veículo foi usado para demonstração de apoio do vereador à ocupação e que isso pode considerado uma ação do mandato. Não sou legalista, não faço parte de partido algum e, básico, defendo o cumprimento da Ficha Limpa. Mas desconfio de decisões do conservador (para dizer o mínimo) Tribunal de Justiça de São Paulo que tendem a trabalhar com dois pesos, duas medidas. E há um histórico sobre isso.

Maria Aparecida foi para a cadeia por ter furtado um xampu e um condicionador. Perdeu um olho enquanto estava presa. Sueli também foi condenada pelo roubo de dois pacotes de bolacha e um queijo minas. As duas situações ocorreram em São Paulo, que tem julgado com celeridade casos de reintegração de posse contra sem-terra e sem-teto, mas é moroso nos casos de desapropriação de terras griladas que deveriam retornar ao poder público. Ou mesmo em julgar dezenas de casos de políticos, fazendeiros e empresários graúdos que poderiam também se tornar inelegíveis pelo Ficha Limpa.

(Não creio que manter alguém na cadeia por conta de um xampu vai ajudar em sua reinserção social, o que mostra uma sanha mais punitiva do que educativa – além de todo o custo do processo ser bem maior do que o bem em questão. Mas a sanha punitiva normalmente tem alvo certo: a massa de sem-advogado, rotos e pobres, que ousaram contra a propriedade privada.)

No ano passado, o Supremo Tribunal Federal divulgou uma notícia de que quase 30% dos habeas corpus concedidos eram favor de pessoas de baixa renda. Dizia que da totalidade de habeas corpus que puderam ser conhecidos (quando o mérito do pedido é analisado) pelo Supremo Tribunal Federal em 2008, 34,7% tiveram o pedido concedido. Dúvida cruel: 58,4% da população tinha renda de até dois salários mínimos de acordo com o IBGE. Essa diferença aponta que tem mais gente rica com acesso à justiça do que os pobres. Ou que tem mais gente rica cometendo crimes e, por isso, precisando de mais habeas corpus do que os pobres.

Lendo o pedido do procurador regional eleitoral tive a impressão de ele estava cumprindo a lei, mas sem aquela convicção de cunho pessoal. Diferente de um caso como o de Paulo Maluf, que está na mesma situação. Aviso aos bairristas: tomei o TJ-SP de exemplo, mas há casos bizarros em outros lugares. Como o Maranhão e o clã Sarney.

O problema não é a aplicação da lei. Que ela seja feita. Mas a aplicação deve valer para todo mundo, caso contrário será uma lei injusta. Como tantas outras por aí.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.