Brasil, Timor e um grito por independência
Hoje o Brasil comemora 188 anos da declaração de sua independência política. De lá para cá, avançamos bastante, mas a imensa maioria da população ainda espera obter a dignidade que falta para que seja livre e não fique à mercê das idiossincrasias de governantes de plantão ou das migalhas oferecidas pelo capital. A profunda desigualdade social da herança da relação Casa-grande e senzala é sintoma de que ainda engatinhamos quando falamos de independência.
Mas para falar de Brasil, escolhi Timor Leste. Estive nessa metade de ilha no Sudeste Asiático em 1998 para fazer uma longa reportagem sobre a luta do povo maubere pela autodeterminação. A gente pobre daquela esquina do mundo enfrentou por um quarto de século um dos maiores exércitos do mundo sem o apoio de quase ninguém e venceu. É possível tirar algumas lições de lá para a nossa realidade.
No dia 30 de agosto de 1999, 78,5% da população do Timor Leste votou a favor de sua autodeterminação e contra a integração definitiva com a Indonésia – o auge de 24 anos de resistência à dominação e guerra pela independência. A ocupação, mantida à força pelo governo do general Suharto, causou um dos maiores genocídios do século 20, com mais de 30% de timorenses mortos direta ou indiretamente pelo conflito – tendo como base o número de habitantes em 1975. Uma onda de violência tomou conta do país próximo à data desse plebiscito, quando grupos paramilitares armados pela Indonésia espalharam o terror entre os timorenses.
A luta pela independência criou bases necessárias para a formação e, principalmente, a manutenção de um Estado livre e autônomo. A resistência da população maubere à anexação com a Indonésia possibilitou que diferenças que bloqueavam a consolidação da união nacional fossem canalizadas em prol de um objetivo único. Ao mesmo tempo, criou e fortaleceu símbolos de uma identidade timorense – que antes não existiam.
As Falintil, a guerrilha timorense, ao contrário do discurso de analistas que gostam de taxar todos os exércitos de libertação nacional do pós Guerra Fria como grupos mercenários, não visavam à pilhagem, ao roubo e à dominação territorial. Até porque, a guerrilha era considerada as forças armadas de Timor, servindo à defesa de um projeto nacional e não ao favorecimento de um grupo ou de outro, ou de uma ideologia específica. Era composta por indíviduos de diversos grupos étnicos de todas as regiões da ilha.
A conjuntura internacional do pós Guerra Fria, com a diminuição da importância estratégica da Indonésia para os Estados Unidos, e a crise econômica Sudeste Asiático no final da década contribuem um pouco para explicar o sucesso da resistência através do enfraquecimento do governo Suharto. Porém, o maior peso internacional veio dos grupos de pressão, munidos de informações fornecidas pela Resistência Timorense no exílio, que fizeram campanha para que seus governos intervissem junto à Indonésia por uma solução para o caso timorense.
No dia 20 de maio de 2002, Xanana Gusmão assumiu o cargo de primeiro presidente da República Democrática de Timor Leste, em uma festa que reuniu chefes de Estado e de governo de todo o planeta. A posse tinha um significado maior porque, ao mesmo tempo, os mauberes recebiam das Nações Unidas a administração total do seu território.
Diante de uma situação de terra arrasada, muitos se perguntaram na época se o Estado timorense conseguiria se manter frente aos desafios econômicos, sociais e políticos sem a tutela das Nações Unidas. Vieram graves crises, atentados, disputas internas. Mas engana-se quem reduz os conflitos em Timor a disputas étnicas, regionais ou religiosas e esquece o difícil processo político que tem sido a fundação do Estado timorense sob a miséria que atinge a maioria da população. Um dos países mais pobres do mundo, entregue à própria sorte durante a ocupação indonésia e transformado em ícone internacional da liberdade, hoje, passado algum tempo da comoção pela independência, foi praticamente deixado de lado na pauta da comunidade internacional. Justamente quando vive sua fase mais delicada.
Boa parte do povo maubere possui poucas perspectivas de um futuro melhor, os sistemas de proteção social são incipientes, grupos políticos no poder não se entendem sobre a melhor forma de alavancar o país e faltam recursos para investimento. Além disso, a riqueza do petróleo (o mar de Timor possui uma das maiores reservas do mundo) ainda não chegou à população.
Mas há uma geração inteira, filhos da ocupação, que lutou para obter a independência e, com isso, desenvolveu uma forte cultura de participação política. Esse capital acumulado será muito útil para enfrentar esses desafios dos primeiros anos de liberdade e assegurar, enfim, a consolidação da democracia. Ou seja, diálogo.
Entrevistei o líder revolucionário, depois presidente e primeiro-ministro Xanana Gusmão em duas ocasiões – a primeira na penitenciária de Cipinang, em Jacarta, capital da Indonésia, quando cumpria pena por tentar fazer do Timor um país livre, e a outra em São Paulo, durante sua visita ao Brasil. Otimista quanto às diferenças políticas, frisava que elas não deveriam ser ignoradas, mas eram levadas em conta para o desenvolvimento do país.
"Pergunta-me se superamos as diferenças. Permita-me que responda que espero que não. Este momento é o momento da vivência das diferenças. É na diferença que vamos crescer e amadurecer. É na diferença que vamos aprender o respeito democrático e enriquecer o nosso debate e as opções tão difíceis que temos de fazer nestes primeiros anos de independência. No que é fundamental e estratégico para o futuro do país, as diferentes forças políticas e da sociedade civil estão em acordo. Creio que este acordo é essencial… No resto, a diferença não só é desejável como saudável."
A periferia do mundo enfrenta um período decisivo. Se puder se unir em torno de um mesmo inimigo – a pobreza, suas causas e causadores – conseguirá também se libertar e ser realmente independente. Resta saber se a disputa do poder pelo poder não irá nos consumir antes disso.
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