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Leonardo Sakamoto

Na próxima encarnação, quero nascer "confiável"

Leonardo Sakamoto

16/03/2011 15h28

Tive a mala barrada no raio-X do aeroporto por conta de uma caneta. Que, como todos sabemos, é mais forte que a espada.

No começo até achava estranho. Mas, com o passar dos anos, à medida em que ganhava cada vez mais cara de terrorista, fui me acostumando. Na dúvida, a culpa é do japonês transgênico ali, ó. Qualquer coisa estranha entre os meus badulaques vira arma de destruiçao em massa.

Em viagens internacionais, quando chego à Imigração, digo aos que me acompanham para irem em frente e não olharem para trás. – O senhor é brasileiro mesmo? (Não, tô mentindo porque tá na moda ser brasileiro) – O que quer dizer este visto do Paquistão (que, como todos sabemos, é lar de terrorista) no seu passaporte? (Você não conta para ninguém? Significa que eu estive lá) – E esse visto da Colômbia? (Ah, não, esse ai é de mentirinha. Ignora.) – Tem alguma documentação que prove que é jornalista mesmo? (A Justiça cassou a obrigatoriedade do diploma para exercer a profissão no Brasil, sorry).

Em portas giratórias de bancos, tenho que ficar praticamente seminu porque o segurança com o controle remoto na mão nunca vai com a minha cara. Por exemplo, em uma das vezes, deu bip. Tinha algumas moedas no bolso. Tirei, voltei. Bip. O cinto, claro! Bip de novo. Será que é a obturação? Bip. O homem com o controle remoto deixou passar. Seu rosto exalava caridade. Atrás de mim, entrou um caucasiano alto, bem apanhado – "pegável", como diriam minhas amigas. Direto. Assim que passou, tirou um megamolho de chaves do bolso, um quilo de metal. Fui lá tomar satisfação com o guardinha. "Afaste-se senhor, essa é uma área de segurança."

Onde é que tinha ouvido isso antes?… Ah, em uma batida policial, quando me mandaram ficar com as mãos na parede junto com outras pessoas que, como eu, deram o azar de andar pela rua, à noite, em um bairro da periferia de São Paulo – que como todos sabemos é criadouro de meliante. Tentei explicar que aquilo não era necessário, que era uma violência arbitrária. Lição a aprender: não discuta com alguém de cassetete ou arma de choque.

Na próxima encarnação, quero nascer rico, ariano e com um rosto confiável. Não significa que estes não passem por esses perrengues. Mas certamente bem menos que pobre, negro e com uma cara escolhida por diretor de novela das nove para ser de bandido.

Ou em uma sociedade livre de preconceitos e em que o respeito aos direitos e à presunção de inocência sejam tão difundidos quanto o ar que respiramos.

Enquanto isso, apóio incondicionalmente os controles rígidos para separar o joio do trigo. Até porque, sem isso, quem é que vai garantir que a horda de bárbaros não se misture com os cidadãos de bem? Cidadãos de bem, que como todos sabemos, é uma categoria que deveria incluir pessoas como eu e você. Já os outros, vai saber…

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.