Topo

Leonardo Sakamoto

Água: Tomar banho longo é o menor dos problemas

Leonardo Sakamoto

22/03/2011 18h02

Já travei este debate aqui antes, mas acho que vale a pena retorná-lo. O que está acontecendo em Jirau , Estreito e Belo Monte apenas confirma que ainda temos dificuldade de usar a água de forma racional, como um bem para garantir qualidade de vida a todos e não como um instrumento de dominação de alguns sobre outros.

Acho ótimo que pessoas e empresas estejam engajadas para o Dia Mundial da Água, que se comemora hoje (prometo que vou dar um tempo nos posts de datas comemorativas – é que é tão fácil…). Portanto, essa onda para não ser apenas uma ação de marketing no calendário anual da lavagem de marca é preciso de substância. Até porque água é um bem escasso e não pode ficar sendo usado para retirar manchas que só vão ser removidas com ações reais que mudem a forma como se faz negócios e não apenas perfume o que está sujo. E não é apenas o uso racional do que se retira do meio ambiente, pois água não serve só para cozinhar, tomar banho ou fazer cerveja.

Observação: não estou menosprezando o problema causado pela retirada de água do ambiente, sem uma devida análise dos impactos. O lençol freático de muitas localidades produtoras de frutas no Brasil está cada vez mais baixo por conta da irrigação. Em outros locais, há brigas antigas com fábricas de bebidas por conta dos baixos valores pagos para a utilização do recurso. Há ainda a situação de projetos de irrigação de pequenos proprietários que estão parados porque ninguém tem grana para pagar a conta da água no final do mês (depois dizem que transpor o São Francisco é tudo de bom). Mundo maluco? Nada, faz sentido – a gente que não percebe.

Mas pensar racionalmente a água passa por racionalizar a construção de grandes hidrelétricas, que afogarão comunidades ribeirinhas ou indígenas em algum lugar da Amazônia ou irão maltratar trabalhadores nos canteiros de obras, em detrimento a apostar em formas mais limpas de produzir energia – que hoje são caras por falta de investimento. Ou a contaminação de rios, córregos e lençóis freáticos com agrotóxicos, um problema lento, que vai se acumulando com o tempo de forma silenciosa e discreta.

Muito tempo atrás, durante as brigas do amianto, um advogado que defendia o interesses dos trabalhadores trouxe um pedaço do produto para ser mostrado em uma audiência judicial com os que defendiam as empresas. O amianto, acusado de causar danos à saúde dos trabalhadores, circulou na mesa. Do lado corporativo, que defendia que o produto era inofensivo como uma bola de gude, ninguém quis tocá-lo… Quando a Anvisa faz uma reavaliação toxicológica de substâncias químicas, parte dos produtores alega que vetos causarão aumento de custos. Entendo o lado deles, mas aceitar algo que não está de acordo com os padrões mínimos é uma bomba-relógio que vai explodir em algum momento. Em pontos de recarga do Aquífero Guarani, aquele conjunto de reservatórios subterrâneos no Centro-Sul do Brasil e Mercosul, já se constata contaminação e em áreas de atividade intensiva de químicos na agricultura.

Ou, por outra, o padrão é o mesmo do amianto: se o problema está longe, ele é um não-problema. Não sou eu que vou manusear os pesticidas mesmo, não sou eu que vou ter minha casa inundada por uma hidrelétrica e nunca ser ressarcido, não sou eu que vou ser acusado de não cuidar da cadeia produtiva da água. Na melhor linha, do "só é errado se te descobrem".

Ninguém considera que quando demando um produto, mesmo que não haja água diretamente em sua fórmula, sou responsável pela forma como ele foi feito – incluindo a água usada em sua fabricação. Banho curto, não lavar a calçada com a mangueira, usar sistemas de descarga mais inteligentes são importantes. Mas são apenas a ponta do iceberg. A capacidade do consumidor de dizer não para marcas que criam os mais diferentes impactos na água do planeta, impactos que, às vezes, não estão à mostra, é que pode fazer a diferença no final das contas.

É função nossa, como jornalistas, trazer a maior quantidade de informação possível para que todos – governo incluso – tomem as ações necessárias. Afinal, a vida se conecta pela água – mas também pode ser por ela destruída.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.