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Leonardo Sakamoto

Jovens podem trabalhar com bebida alcoólica?

Leonardo Sakamoto

20/04/2011 13h08

A Superintendência Regional do Trabalho do Mato Grosso afastou um adolescente de 16 anos do trabalho como garçom de um restaurante em Várzea Grande, município colado à capital Cuiabá. A pedido do pai, a Vara Especial da Infância e Juventude autorizou a volta do rapaz ao serviço, mesmo com posição contrária do Ministério Público do Trabalho.

O magistrado Jones Dias levou em consideração a Constituição Federal, que proíbe o trabalho de jovens com menos de 14 anos e permite de 14 a 16 (na condição de aprendiz) e acima de 16 em qualquer condição, desde que não seja serviço noturno, insalubre e perigoso. Ele trabalharia durante o dia, portanto, na opinião do juiz, estaria dentro da lei. A decisão foi tomada no mês passado e agora foi publicizada pelo poder público.

Mas, como ressaltou a este blog o superintendente regional do Trabalho no Mato Grosso, Valdiney Arruda, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a própria Consolidação das Leis do Trabalho proíbem o trabalho com bebidas alcoólicas, que fazia parte das suas atividades.

O Artigo 67 do ECA diz que "ao adolescente empregado, aprendiz, em regime familiar de trabalho, aluno de escola técnica, assistido em entidade governamental ou não-governamental, é vedado trabalho: (III) realizado em locais prejudiciais à sua formação e ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social".

Ao passo que o artigo 403, parágrafo único, da Consolidação das Leis do Trabalho foi alterado em 2000 para contemplar redação semelhante: "o trabalho do menor não poderá ser realizado em locais prejudiciais à sua formação, ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social e em horários e locais que não permitam a freqüência à escola".

O juiz não considerou ainda o decreto 6481, de 12 de junho de 2008, que inclui o tipo em questão ("venda, a varejo, de bebidas alcoólicas") na lista de Piores Formas de Trabalho Infantil e portanto proibido antes dos 18 anos.

Por fim, há jurisprudência dizendo o contrário. Em uma decisão de 2010, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região confirmou a proibição de jovens com menos de 18 anos de trabalharem em locais com venda de cigarro e bebidas alcoólicas no Distrito Federal utilizando tanto o ECA quanto a CLT como justificativa.

O fato é que o magistrado preferiu referendar o pátrio poder do que analisar as consequências desse trabalho para a qualidade de vida do rapaz. De acordo com juízes trabalhistas que ouvi em São Paulo sobre o assunto, se o caso tivesse caído em uma vara trabalhista ou federal haveria grandes chances da decisão ser diferente. Mas como "se" não existe na vida real, o caso teve o desfecho que teve.

Seria leviano da minha parte dizer que um braço moleque que segura uma bandeja não se faz importante para complementar o sustento de muitas famílias. E que isso não se repete em todo o país, em milhares de botecos, biroscas, bares, restaurantes e afins. Ou mesmo supor as razões que levaram o pai a esse pedido. Mas o contato que os jovens mantém desde cedo com bebidas alcoólicas, sem preparo físico ou psicológico para isso, pode induzi-los ao consumo precoce e aos conhecidos danos recorrentes disso. Além do mais, o desempenho da atividade pode ocorrer em detrimento à formação individual do rapaz.

Aqui surgem os leitores bradando: mas eu trabalhei cedo e isso moldou meu caráter! Até entendo que muita gente sinta que sua experiência de superação é bonita o suficiente para ser copiada pelo seu filho ou filha. Mas será que não imaginam que o trabalho infantil (de uma maneira geral) e o trabalho de jovens (em situações específicas), que atrapalham o desenvolvimento da pessoa, não precisa ser hereditário?

A Organização Internacional do Trabalho recomenda que o itinerário de trabalho não deve começar com um emprego – ainda mais com um emprego como esse – mas com a educação, a formação ou a acumulação de experiência produtiva. De qualidade.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.