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Leonardo Sakamoto

No tijolo de nossas casas, o suor de jovens escravos

Leonardo Sakamoto

03/05/2011 15h24

Uma operação de fiscalização em Gouvelândia, Estado de Goiás, resgatou 64 pessoas do trabalho análogo ao de escravo em olarias. Parte delas havia nascido no local de trabalho e enfrentado, com sua família, um quadro de servidão por dívida, condições degradantes e insalubridade na produção de tijolos.

Reportagem de Bianca Pyl, da Repórter Brasil, mostra que, além das dívidas ilegais (que em alguns casos chegavam a R$ 16 mil), donos de 17 olarias flagradas com escravidão retinham objetos pessoais – como roupa, panela e até berço – como forma de garantia de pagamento. Sete adolescentes (três com menos de 16 anos) tinham que trabalhar diariamente das 4h às 10h da manhã, antes de ir à escola. O serviço de produção dos tijolos era ensinado pelos pais aos filhos e filhas.

A operação, realizada entre março e abril, foi executada por uma equipe de auditores da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Goiás, procuradores do Ministério Público do Trabalho e agentes da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal.

Segundo a reportagem, nenhum dos oleiros possuía Carteira de Trabalho assinada. Durante o período das chuvas, não havia trabalho nem salários, pois o pagamento era feito de acordo com a produção. Em função disso, trabalhadores se endividavam no comércio da cidade ou mesmo com os próprios empregadores por meio da venda antecipada de tijolos a preços mais baixos.

Juntamente com esses casos de servidão por dívida, também foram constatadas condições degradantes. As famílias moravam em construções precárias, com telhados feitos de lona e paredes rachadas e com risco de desabar. Não havia instalações sanitárias adequadas – tudo era feito no meio do mato. Para tomar banho, os empregados utilizavam baldes. A água consumida tinha aparência turva. Nas fazendas onde funcionavam as olarias, o esgoto corria a céu aberto. As instalações elétricas estavam irregulares e havia exposição a choques.

As famílias eram oriundas da própria região e alguns moravam há décadas na área de produção de tijolos. Os empregados iam mudando de olaria em olaria. Além dos trabalhadores que nasceram nas olarias, havia vítimas no local há 15 anos.

Nenhuma delas possuía licença ambiental para o funcionamento e a madeira utilizada na queima dos tijolos não apresentava documentação de procedência. Os tijolos eram vendidos para depósitos nos municípios de Santa Helena, Quirinópolis e Rio Verde.

Houve libertação em 17 das 32 olarias inspecionadas. Foram lavrados 110 autos de infração e as verbas rescisórias pagas totalizaram mais de R$ 223 mil. A quantia foi paga pelos supostos arrendatários e também pelos donos das fazendas e os resgatados vão receber seguro-desemprego. Por intermédio do sindicato de trabalhadores rurais, a Usina São Francisco se dispôs a contratar os resgatados que manifestarem interesse em atuar nas lavouras da cana-de-açúcar.

Duas décadas
No Brasil, casos de trabalho escravo de longo relacionamento entre explorador e explorado são raros. Em média, o período de escravização varia entre três e quatro meses – vale lembrar que o escravo brasileiro no campo não costuma ser o empregado regular da fazenda, mas sim o safrista temporário. Em países como o Paquistão, relacionamentos longos são mais comuns, com a dívida da família prendendo geração após geração. Apesar disso, vez ou outra também encontramos situações bizarras com correntes longas por aqui.

Em março de 2009, uma homem foi libertado do trabalho escravo após mais e 20 anos de serviço no mesmo local, uma fazenda de gado em Alegre (ES). A operação, realizada pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, o Ministério Público do Trabalho e a Polícia Federal, encontrou trabalhadores em péssimas condições de alojamento, dormindo no chão, sem equipamentos de proteção individual, trabalhando descalços. Além de não receberem pelo trabalho, ele eram obrigados a comprar alimentos do próprio empregador, o que os mantinha em situação de servidão por dívida. Bem, nem é necessário dizer que não tinham registro trabalhista.

Município de Alegre… Irônico, não?

Na época, o coordenador da ação disse que o principal motivo para que os trabalhadores se mantivessem na propriedade era o alcoolismo, "fomentado pelo fornecimento de bebidas alcoólicas por parte do empregador".

Em maio de 2003, presenciei uma situação semelhante quando acompanhei uma operação de fiscalização que acabou por libertar trabalhadores na fazenda Ponta da Serra, no Pará. Lá foi encontrado Francisco Moreira. Pelos seus 19 anos como carpinteiro da fazenda sem direitos trabalhistas e com a audição comprometida por causa do serviço, recebeu R$ 40 mil, descontados os impostos. Aos 64 anos, já tinha passado da idade de se aposentar, mas tinha medo de parar de trabalhar por não ter a carteira de trabalho assinada.

Duas décadas é muito tempo. Nossa democracia tem pouco mais do que isso. Mas, às vezes, por histórias assim, parece menos.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.