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Leonardo Sakamoto

Míseros microcontos para o fim de semana

Leonardo Sakamoto

24/09/2011 17h02

Posto no Facebook míseros contos e crônicas sobre o cotidiano. Antes eram diários, agora tornaram-se esporádicos, decorrentes de pontuais inspirações. Esta é a sexta panelada deles que reúno no blog.

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Na primeira noite, ela trouxe uma vela. Disse que ficaria a duração da chama. Uma hora depois, quando a luz se apagou, levantou-se, arrumou o vestidinho rendado e, com as sandálias na mão, se foi pela estradinha de terra. Apaixonado, comprou velas de sete dias, velas de metro e outros castiçais votivos. Mas todas duraram uma hora… Por fim, deu as mãos para o tempo, fazendo valer cada minuto juntos como se fosse o último. Desde então, dizem que a casinha de Chico tem uma luz que não se apaga.

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Dizem que a menor distância entre dois pontos é uma reta. Menos para meu avô. "Besteira! A menor é aquela que é mais divertida." Homem direito, nunca andou em linha. Certa vez, levou mais de mês para chegar a Belém, pois serpenteou meio Brasil, deixando amigos e saudades por onde passou. Cresci e, encantado pela solidão do imediato, achei isso perda de tempo. Até que ele morreu. E um mundo de gente, sorrindo de saudade, foi ao seu enterro. Desde então, nunca mais peguei a Dutra para ir ao Rio.

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Quando o pôr-do-sol abriu um arco vermelho no anil, encolheu-se, abraçado aos joelhos, com saudade do seu sorriso. Mas se conteve. Afinal, não ia incomodá-la com algo menor que ela. Porém, a lua – que saltou quase cheia, iluminando a areia à sua volta – sussurou em seu ouvido: escreve pra ela, vai! Bem, quem era ele para ignorar a lua?

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Ainda escuro, ouvia meu pai estrilar os sininhos da bicicleta pela estrada de terra. Quando clareava, retornava de mãos vazias, aninhando-se junto à lenha do fogão para comer pão de milho. Perguntei o que fazia tão cedo? "Acordar o sol." Foi então que, numa madrugada, ouviu-se apenas o silêncio. Papai, cansado, decidiu dormir para sempre. Ficamos sete dias no breu até que vovó, entregando a bicicleta, me deu o ofício da família. Minha mãe diz que é maldição. Eu não. Gosto do sininho.

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Tinha apenas um vestido, de chita, que ganhara do padrinho. Pouco importava que seu corpo sumisse nele. Ao vesti-lo, sentia-se a mulher mais linda do mundo. E, por isso, assim o era. O seu brilho ofuscou as outras meninas da vila, que de tocaia, rasgaram-no e o lançaram às cabras logo na véspera do São José. Chorou tanto que o umbu floresceu. Sua vó, então, colheu as flores e as costurou num belo vestido branco. À noite, a festa sem lua iluminou-se com ela, que dançou até a última pétala cair.

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Estava cansado. Não por ele, mas pelas mil vidas que vivera até então. Histórias de outras pessoas que tomara emprestado com papel e caneta e agora carregava consigo. Afinal, cada um tem o fardo que merece. Ela, em um sorriso, gentilmente colocou a cabeça dele no seu colo e, com um longo cafuné, foi retirando as lembranças boas e ruins, uma a uma. Quando a última saiu, dormiu como há tempos não fazia. E sonhou com sapatinhos desamarrados, sorvete de doce de leite e sete gérberas laranjas.

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Quando ficava de cama, seu pai trazia um velho livro cujas últimas páginas haviam sido arrancadas. Então, ela se aninhava nos seus braços para inventarem o final. Na gripe, a princesa fugiu do castelo e foi ser repórter. Perna quebrada: deixou o príncipe em casa cozinhando e saiu com as amigas. Amídalas? Juntou-se a outras e mudaram o mundo. Ontem, já crescida, foi comprar o primeiro livro para a filha. Escolheu com carinho, arrancou as três últimas páginas e, sorrindo, pediu: "para presente".

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Andando pela areia, Carol viu o mar devolver uma garrafa. Percebeu que nela havia uma mensagem – essas coisas que só acontecem em filme. Sacou fora o papelzinho desbotado que, para sua surpresa, estava em branco, enrolado em um lápis. Achou graça. Sentou-se na areia para escrever, mas a mão se deteve. Então, devolveu tudo, fechou com cuidado e, ao ver uma boa onda, arremessou com a força do mundo. Dizem os velhos pescadores de Ilhabela que uma garrafa com papel e lápis circula a ilha, indo e voltando da praia, desde 1967.

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A pouco do topo, parou. Não era medo, apesar da altura. Como os pés e mãos conheciam a montanha, a cabeça – livre – foi longe. Teve preguiça de tudo. Da escalada, dos amigos e inimigos, dos textos que escrevia e dos que não escrevia. Era aconchegante a idéia de ficar lá para sempre, pendurado ao mundo por uma cordinha. Então, uma voz o chamou. Olhando para o alto, viu um sorriso se abrindo, uma brisa fresca dando sentido novo às coisas. Voou para cima atrás dele. E nunca mais desceu.

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Depois que sua filha caiu no mundo e o seu genro desistiu da vida, ela fez o neto homem crescido. Trocavam colo. Quando Carmen adoeceu, ficou junto o quanto pode mas, por fim, contratou alguém para ajudar. Vendo o cuidado da moça com a vida, ele se apaixonou. Numa manhã de domingo, a avó pediu para que ela se sentasse na cama. Pôs a mão em sua barriga. Sorriu. E, sorrindo, se foi. Dias mais tarde, o teste de gravidez deu positivo. Uma vida por outra. Carmen diria que foi uma troca justa.

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Quando se separou, fez questão da velha Olivetti azul. O tempo passou e a solidão foi se assentando em gosto amargo deixado pelas noites em branco. Até que, em uma delas, ouviu um tec-tec-tec: a Olivetti havia lhe dado um poema. Neruda, Leminski, Quintana, Cabral… Escrevia outros de volta. Meses depois, veio um endereço. Lá chegando, um sorriso lindo abriu a porta e lhe mostrou sua Olivetti, também azul. Na manhã seguinte, ao voltar para casa, lançou o notebook pela janela.

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O rádio, que tocava as mesmas notícias de sempre, insatisfeito com mais um início de manhã silencioso, correu o dial até Paulinho da Viola, em Choro de Memórias. E, pela primeira vez, ele se virou para ela – que observava o rádio com olhos perdidos, lembrando de tempos mais felizes. De súbito, tirou o sapato, lançou o paletó na cadeira e a pasta no chão e convidou-a para dançar. O rádio fez sua parte, repetindo a mesma música por horas. E, naquele dia, não houve tarde, nem noite. Só manhã.

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"Vamos embora. O rio vai secar!" Mas o velho índio ria alto… Não se lembrava de nenhuma história dos antigos em que o Xingu os deixara na mão. Por isso, sentou-se numa barranca da Volta Grande e pôs-se a pescar. Então, vieram peixes mortos. Depois, a caça sumiu. A maleita se impôs. Mata virou lenha. Meninas venderam o corpo. Rapazes acabaram escravos. Vendo o fim do mundo, o velho quis chorar. Mas era tarde. Belo Monte havia roubado também a tristeza, deixando um curto fio de lágrimas.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.