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Leonardo Sakamoto

Da vitrola ao iPod, "16 toneladas" continua atual

Leonardo Sakamoto

22/01/2012 07h41

Historinha leve para o domingo. A original, em inglês, da música "16 toneladas" trata de um caso de trabalho escravo. A informação pode parecer estranha porque estamos mais acostumados à letra alegre da versão em português – gravada por Noriel Vilela, nos anos 60, e depois tornada sucesso de samba-rock pelas mãos do Funk Como Le Gusta em 1999. A original, de 1946, cantada por Merle Travis, em estilo country – e difundida por nomes como Johnny Cash – discorre sobre a miséria em minas de carvão:

You load sixteen tons, and what do you get?
Another day older and deeper in debt.
Saint Peter, don't you call me, 'cause I can't go;
I owe my soul to the company store…

Em tradução livre:
Você carrega 16 toneladas e o que ganha com isso?
Um outro dia mais velho e mais afundado em dívida.
São Pedro, não me chame, porque eu não posso ir;
Eu devo minha alma à loja da companhia.

O segundo verso fala da servidão por dívida, que ainda é uma das formas mais comuns de manter alguém escravizado no Brasil. Ao ouvir rumores de que existe serviço farto em fazendas, o peão vai para esses locais espontaneamente ou é aliciado por "gatos" (contratadores de mão-de-obra que fazem a ponte entre o empregador e o peão). Já na chegada, o peão vê que a realidade é bem diferente do que havia sido prometido.

A dívida que tem por conta do transporte aumentará, uma vez que o material de trabalho pessoal é comprado na cantina (loja) do próprio gato, do dono da fazenda ou de alguém indicado por eles. Os gastos com refeições, remédios, pilhas ou cigarros vão para um "caderninho", e o que é cobrado por um produto dificilmente será o seu preço real. Cobra-se por alojamentos precários, sem condições de higiene. No dia do pagamento, a dívida do trabalhador é maior do que o total que ele teria a receber – isso considerando que o acordo verbal feito com o gato é quebrado, tendo o peão direito a um valor bem menor que o combinado. Ao final, quem trabalhou meses sem receber nada acaba devedor do gato e do dono da fazenda, e tem de continuar suando para poder quitar a dívida.

A música original bem que poderia estar sendo cantada por bóias-frias, cortadores de cana no interior do Brasil, que colhem no braço 16 toneladas por dia. Alguns milhares deles em situação de trabalho escravo (mais de 42 mil já foram libertados oficialmente pelo governo brasileiro desde 1995) e muitos outros em condições precárias e de superexploração. Ou mesmo do grande número de trabalhadores que foram encontrados em situação de escravidão contemporânea na produção de carvão vegetal na Amazônia, Cerrado e Pantanal – produção que abasteceu fornos de ferro-gusa, matéria-prima para o aço. Sim, o seu carro, a nossa casa ou geladeira podem ter sido feitos com trabalho escravo e você nem sabia. Ou não se importava.

Do século 20 nas minas de carvão ao 21 nos canaviais, fomos do LP ao MP3, mas a música continua cantando a mesma realidade.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.