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Leonardo Sakamoto

O curioso caso do homem que quer ser escravo

Leonardo Sakamoto

27/03/2012 13h55

A triagem de denúncias de trabalho escravo costuma ser bastante rigorosa, primeiro por parte de entidades sociais, sindicatos e órgãos governamentais, que as recebem e as repassam ao poder público. Depois, pelo próprio Ministério do Trabalho e Emprego. Mas há exceções que ignoram 17 anos de combate sistemático a esse problema e acabam ocorrendo. Não há vida sem exceções – como um dia me confidenciou um filósofo em uma birosca em Eldorado dos Carajás.

O que fazer, por exemplo, quando uma pessoa cria um mundo de fantasia e se esconde lá dentro, acreditando ter sido escravizado quando nem trabalhou no local em questão?

Nos últimos quatro anos, um trabalhador rural tem visitado estados na Amazônia Legal, como Pará, Maranhão, Tocantins e Roraima, para fazer denúncias improcedentes sobre trabalho escravo. Ganhou até o apelido de "peão fantasioso".

Ele detalha o caso com precisão, corporifica os sofrimentos, interioriza – de verdade – a mentira. "Chega a provocar choro em quem o ouve, que se compadece com a situação", explicou um representante da Comissão Pastoral da da Terra que recebe denúncias de trabalho escravo no Tocantins.

Afinal de contas, se há casos de trabalhadores que andam dezenas de quilômetros por estradas de lama, fugindo de capatazes de fazendas, até encontrar ajuda, por que com ele seria diferente? Tendo em vista os casos de graves violações aos direitos humanos na região (assassinatos, torturas, espancamentos…), as aberrações que ele conta minuciosamente são bastante plausíveis.

Na maioria dos casos, a Comissão Pastoral da Terra desconfiou da história e pegou ele no pulo. Mas em alguns poucos, equipes do Ministério do Trabalho e Emprego foram verificar as denúncias e não encontraram nada.
Nesse momento, ele desaparece.

Atende pela alcunhas de Antonio Rodrigues Correia. Mas também de João Gomes Muniz, de Antonio Calvário Muniz e de "Manchinha". Teria 33 anos e seria filho de Buriticupu, Maranhão.

A sua ultima aparição foi em Pacajá (PA) neste mês de março. De acordo com outra representante da Comissão Pastoral da Terra no Pará, o mais provável é que ele sofra de distúrbios psicológicos. Às vezes, quando o seu pedido não é atendido, sai de si. A Pastoral da Terra já circulou fotos do sujeito entre seus escritórios para evitar enganos.

Lembrei-me do caso da Grávida de Taubaté, de pacientes com a síndrome de Münchausen (pessoas que provocam ou simulam sintomas de doenças para obter atenção médica; diferente do hipocondríaco, sabem que estão exagerando) ou outras carências de mundo. Nada disso justifica o desgaste bizarro causado pela situação, é claro. Mas não há como ter uma solidariedade quase que patética sobre esses casos. O que faz uma pessoa querer se passar por alguém que foi despido de sua dignidade ou liberdade para ganhar atenção? Loucura, talvez. Idiotice, quem sabe. Provavelmente não ser nada para a sociedade e querer passar a ser através de sua presença incômoda.

Não é à toa que, já em 1517, Gil Vicente, no "O Auto da Barca do Inferno", escolha o parvo como um dos únicos que não é condenado à danação eterna. Por chegar desprovido de tudo, consegue driblar o diabo e até insultá-lo. Sincero e humilde, considera que não é ninguém e acaba sendo salvo. Em um mundo que defende a individualidade e, ao mesmo tempo, dissolve identidades em uma massa homogênea, o que faz menos sentido: um "peão fantasioso" ou celebridades televisivas desesperadas por atenção?

E como mudam-se os rótulos, mas ficam as garrafas, os outros quatro salvos na barca são cruzados, que mataram em nome de sua fé.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.