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Leonardo Sakamoto

Pressão alta, na verdade, é sobreviver com pouco

Leonardo Sakamoto

16/05/2012 13h26

A Organização Mundial da Saúde divulgou, nesta quarta (16), que um em cada três adultos sofre de hipertensão – responsável por metade das mortes por derrame e problemas cardíacos no mundo. O estudo mostra que os diagnósticos e os tratamentos baratos desses problemas reduziram a sua incidência nos países desenvolvidos. Segundo o UOL Notícias, a preocupação da OMS é com países pobres, como na África, onde não são aplicadas medidas preventivas e as pessoas não sabem que carregam a doença.

Faço parte daquela parcela da população dependente de remédios para ter uma vida normal. No meu caso, hipertensão e coração, como já expliquei anteriormente. Ou seja, tô no terço do mundo em questão. Só que, infelizmente, para quem não gosta deste blog, não tenho com o que me preocupar – pelo menos no curto prazo. E, no longo, todos estaremos mortos.

Retomo o que já disse aqui. Um amigo que sofre de outro mal crônico matutou que talvez sejamos exemplos vivos de que a humanidade conseguiu dar um nó na seleção natural. Se deixassem a natureza seguir seu curso, seres malfeitos como eu e ele estariam naturalmente fadados a ser peça empalhada de museu: "Mãe, olha lá, isso era um cardíaco, não?". Bateríamos as botas antes de atender ao divino chamado de crescer e multiplicar – ou durante o cumprimento desse chamado. Hoje, não mais. Esqueça o blá-blá-blá de que só os fortes sobrevivem: os remendados, como nós, é que herdarão a Terra. Sua vantagem competitiva? Ter sempre à mão uma boa despensa com medicamentos.

Digo parcela da população porque sou um daqueles que, felizmente, pode comprar remédios de ponta, que funcionam e têm poucos efeitos colaterais. Sucesso garantido graças a exigentes testes realizados à exaustão pelas maiores indústrias farmacêuticas do mundo em milhares de "voluntários" em regiões pobres do mundo. Muitos morrem no meio do caminho, mas o que é a vida de um pobre africano diante da saúde de nós da classe média – e das possibilidades de lucro das grandes corporações, não é mesmo?

E, como já disse, quando uma pessoa que tem acesso a recursos privados de saúde, como eu ou o doutor Drauzio (que pegou febre amarela e narrou a experiência no belo livro "O Médico Doente"), fica ruim, há chance maior de cura do que alguém que depende de si mesmo, do poder público, de suas filas e "portas duplas".

Enfim, parte da população vive no século 21 da medicina, enquanto outros ainda engatinham pela Idade Média das filas em hospitais, dos remédios inacessíveis, da falta de saneamento básico e da inexistência de ações preventivas. Nada de novo.

Na prática, quem consegue jogar xadrez com a Dona Morte e enganá-la por um tempo são os mais ricos, que possuem os meios para tanto. Os mais pobres, por mais que tenham força de vontade e queiram continuar vivendo, não necessariamente conseguem a façanha. Vão apenas sobrevivendo, apesar de tudo e de todos, ajudando com seu trabalho e, algumas vezes, como cobaias, os que ganharam na loteria da vida a terem uma existência mais feliz.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.