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Leonardo Sakamoto

E quando jornalistas são cobrados por patriotismo na Rio+20?

Leonardo Sakamoto

15/06/2012 15h26

Recebi um rosário longo de mensagens lamentando minha falta de patriotismo ao afirmar que o Brasil pensava que ia todo elegante para a Rio+20 mas que, na verdade, seguia nu em pelo. A idéia do post (para quem tem preguiça de ler o link acima) era de que meia dúzia de ações de marketing não consegue passar a borracha em todo um modelo de desenvolvimento que constrói a felicidade de parte da população sobre a dignidade e a qualidade de vida da outra. E o futuro de ambas.

Eu simplesmente adoro que alguém critique o meu patriotismo. Sabe por que? Por que não sofro desse mal.

Não amo meu país incondicionalmente, como não amo nada incondicionalmente. Mas gosto dele o suficiente para tentar entendê-lo e ajudar a torná-lo um local minimante habitável, através da narração e análise do que acontece, para a grande maioria da população. Gente deixada de fora do grande butim, que aparece sorrindo em propagandas oficiais, relatórios de sustentabilidae e folders de algumas organizações sociais para mostrar que o Brasil é dez. Mas que, no dia a dia, encaram a realidade da falta, da ausência, da fome, de um ar irrespirável ou de um rio desviado ou poluído.

Qual a melhor demonstração de respeito por um país? Vestir-se de verde e amarelo e se enrolar em uma bandeira enquanto canta o hino nacional em prantos? Contar mentiras sobre a realidade para fazer bonito lá fora?  Ou apontar o dedo na ferida quando necessário? Ama a si mesmo, por outro lado, os que se escondem do debate, usando como argumento um suposto "interesse nacional" – do petróleo (EUA) ao etanol (Brasil) – que, na verdade, trata-se de "interesse pessoal". Se questionado, corre para trás da trincheira do patriotismo. Que, como disse uma vez o escritor inglês Samuel Johnson: "é o último refúgio de um canalha".

E já que fico falando mal do meu país por aí, trago à tona uma lista, que organizei tempos atrás, de pontos que o governo não quer nem ouvir falar durante a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável. O divertido é que reuni em cada ponto o discurso oficial ou oficialesco (tem tanto pelego por aí que vocês não imaginam…) para tratar do tema diante de críticas.

Uns podem chamar de ironia, outros de formas pouco ortodoxas de reinterpretar a realidade. Eu que já ouvi isso da boca de representantes do povo com estes ouvidos que a terra há de comer prefiro acreditar que era uma tremenda cara de pau mesmo.

Quando a pergunta é sobre a flexibilização do Código Florestal

…a resposta deve conter algo como: "Esse processo é um exemplo de como um país, que conta com uma boa legislação ambiental, pode melhorá-la ainda mais através de um Congresso Nacional compromissado com a qualidade de vida das futuras gerações".

Quando a pergunta é sobre problemas na construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte…

… a resposta deve conter algo como: "O licenciamento da usina foi um exemplo de como ouvir as comunidades impactadas por um empreendimento de geração de energia elétrica, pois o progresso de muitos não pode se sobrepor sobre a dignidade de alguns".

Quando a pergunta é sobre greves e reclamações sobre a reforma e construcão de estádios para a Copa

… a resposta deve conter algo como: "A preparação para a Copa é um modelo de justa remuneração, de respeito à força de trabalho e de tratamento amigável da polícia frente ao pleito de operários e de planejamento para evitar impactos negativos ao meio ambiente".

Quando a pergunta é sobre a forma através da qual foi feita a construção da Usina Hidrelétrica de Estreito…

… a resposta deve conter algo como: "A usina é um exemplo de reconhecimento das famílias atingidas e de rápida indenização das comunidades retiradas para a construção de uma obra".

Quando a pergunta é sobre os impactos causados pela transposição de parte das águas do do São Francisco

… a resposta deve conter algo como: "Este é um modelo de como considerar a opinião dos diferentes stakeholders antes da implantação de um projeto de engenharia, levando em conta as realidades socioambientais regionais para a implementação de um empreendimento".

Quando a pergunta é sobre problemas no Minha Casa, Minha Vida

…a resposta deve conter algo como: "O projeto de construcão de moradias é um exemplo de como não usar trabalho escravo na construção de imóveis em grandes cidades brasileiras e de como não usar madeira oriunda de desmatamento ilegal da Amazônia".

Quando a pergunta é sobre o afrouxamento de alguns licenciamentos ambientais

… a resposta deve conter algo como: "O Ministério do Meio Ambiente tem conseguido ser um modelo de como um governo consegue resistir às pressões de grandes empreendimentos pela flexibilização das regras de licenciamento ambiental, garantindo a dignidade de indígenas, quilombolas, ribeirinhos, caiçaras e camponeses".

Quando a pergunta é sobre problemas na construção da usina Hidrelétrica de Jirau

…a resposta deve conter algo como: "Jirau é um modelo de tratamento aos trabalhadores envolvidos na construcão de um empreendimento e de seu canteiro de obras e responder as suas reivindicações e direitos".

Quando a pergunta é sobre o alto nível de enxofre nos combustíveis…

… a resposta deve conter algo como: "O Brasil é um exemplo de país que conseguiu reduzir suas taxas de enxofre no diesel para valores abaixo daqueles adotados na União Européia e Estados Unidos por se preocupar com a qualidade do ar que respiramos".

Quando a pergunta é sobre os impactos em nossa biodiversidade…

…a resposta deve conter algo como: "Somos um exemplo de país que recompõe sua área florestal desmatada utilizando árvores nativas, brasileiras, como o eucalipto e o dendê".

Quando a pergunta é sobre a violação de direitos das populações indígenas…

… a resposta deve conter algo como: "Nunca na história deste país o governo garantiu tantos direitos às populações tradicionais. Haja visto os guarani kaiowá no Mato Grosso do Sul que vivem felizes em suas terras".

Quando a pergunta é sobre trabalho escravo na produção de etanol…

… a resposta deve conter algo como:  "A produção de etanol contém algumas das melhores práticas na relação de trabalho, com a jornada de trabalho, com a condição de respeito ao direito do trabalhador. Durante muito tempo o etanol brasileiro foi acusado de utilizar trabalho escravo. Porque a forma de diminuir a importância do etanol como uma alternativa ao uso de combustíveis fósseis era fazer uma acusação socioambiental contra nós".

Ouvindo os depoimentos de representantes do governo, o jogral está ensaiadinho. E se o jornalista for insistente, há sempre a saída de "o mundo vive uma crise e o Brasil não pode se dar ao luxo de perder empregos para garantir preservação ambiental. Primeiro temos que resolver essa instabilidade, para depois fazer as mudanças necessárias – e em conjunto com as outras nações – para uma economia verde global".

Ou seja, empurrando com a barriga em nome de uma falsa dicotomia.

O problema é que, como diria Samuel Beckett, vamos esperando Godot.

Temos fé que Godot um dia venha.

Mas Godot não veio. Godot nunca vem.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.