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Leonardo Sakamoto

Sai "Ordem e Progresso". Entra "Devo, não nego. Pago quando puder"

Leonardo Sakamoto

19/10/2012 17h02

À medida em que o brasileiro vai se endividando, pipocam, aqui e ali, comentaristas de economia dando sugestões para sair do atoleiro ou de como levar uma vida financeiramente saudável. Já abordei o tema em outro post nesta semana mas, a partir de hoje, deflagro uma guerra santa às dicas de economia doméstica que, por não condizerem com a realidade do brasileiro, soam como aramaico. Em nome de Deus, basta de sugerir coisas que apenas uma minúscula parcela dos endividados – normalmente aquela que não precisa de dica – pode seguir! Isso é humilhação pública ou vergonha alheia, dependendo do ponto de vista.

Como disse um amigo, Alá nos poupe de enlouquecer ao ouvir respostas a questionamentos do tipo: "Tenho 22 anos, ganho R$ 7,5 mil por mês, economizo R$ 5 mil e tenho R$ 300 mil na poupança e em investimentos. Devo comprar um imóvel à vista ou dar entrada em dois?" Ai, que gastura.

Dizem que o brasileiro é um iletrado no que diz respeito à educação financeira. Pode até ser, mas a responsabilidade por isso não é apenas nossa. Ou você acha que um bombardeio de comerciais de TV afirmando coisas como "não use dinheiro, use Blastercard" não nos joga em um mundo Special, Silver, Gold, Platinum, Diamantium, em que o céu é o limite pré-aprovado do cartão? Aí depois, para corrigir o que anos de comerciais fizeram, a solução é Paulo Freire na veia, com o aprendizado ocorrendo através própria realidade. Em outras palavras, só a falência educa.

E, como já disse antes neste blog, não é uma questão apenas de gastar além do que se tem, mas não ter o suficiente para garantir o que foi construído, coletivamente, como um patamar mínimo de qualidade de vida. De acordo com o Dieese, o salário mínimo para atender as necessidades de uma família, atendendo ao que é previsto pelo artigo 7o da Constituição Federal, seria de R$ 2.616,11 – em setembro de 2012.  Como a gente resolve nesses casos? Qual seria a recomendação para essas pessoas? Sentar sobre a dívida e chorar? Trago alguns exemplo, para ilustrar o que estou dizendo:

Dúvida 1 – Creio que a educação é o melhor legado que podemos deixar às nossas crianças. Por isso, dedicamos boa parte do orçamento doméstico para garantir que nossos dois filhos estudassem em uma boa escola particular. Contudo, como o aumento das mensalidades foi muito maior que o pífio crescimento dos meus ganhos e os da minha esposa (sou jornalista free lancer, ela é designer free lancer), isso vai nos obrigar a adotar mudanças. O que fazer?

Sugestão – Todo mundo tem um filho preferido.

Dúvida 2 – Sou vendedor autônomo e trabalho com meu carro. Fiz um leasing de 60 parcelas de um Gol e durante um tempo consegui quitar as prestações regularmente. De uns tempos para cá, porém, comecei a acumular prestações. Qual a melhor alternativa para que eu possa continuar me deslocando no trabalho?

Sugestão – Siga as tradições do povo brasileiro e vá de ônibus.

Dúvida 3 – Recentemente, fiquei doente e precisei de uma internação de emergência. Infelizmente, o plano de saúde que pago, religiosamente, há oito anos, não cobriu todas as despesas. Agora, tenho uma dívida com o hospital e não posso pagá-la. Para piorar, sou autônomo, contribuo com o piso do INSS, e vai demorar um bom tempo até me recuperar totalmente e voltar ao trabalho. Ou seja, estou praticamente sem renda. Qual seria a saída mais adequada para resolver meu problema?

Sugestão – Da próxima vez, use chá de boldo.

Dúvida 4 – Eu tinha uma dívida no cartão de crédito. Aí peguei um empréstimo consignado no meu salário e quitei a dívida do cartão. Então, o valor que sobrou no salário era insuficiente para os meus gastos no mês – e entrei no cheque especial. Como os juros estavam escorchantes, fiz um segundo empréstimo em outro banco, uma carta de crédito, quitei a dívida e pedi para o gerente acabar com meu cheque especial. Para cobrir o buraco do consignado, mais o CDC, tive que procurar um segundo emprego e optei por uma coisa mais autônoma, vendendo cosméticos. Fiz um "investimento inicial" usando meu cartão de crédito, como pedia a empresa, mas a mercadoria era uma droga e encalhei com o prejuízo. Agora estou devendo em dois bancos e, novamente, no cartão e não tenho mais acesso a nenhuma linha de financiamento porque o gerente não quer ressuscitar meu cheque especial. O que eu faço?

Sugestão – Fuja.

Enfim, esta não é uma crítica aos dedicados profissionais que gastam seu tempo tentando desatar nós da vida dos outros. Mas apenas uma reflexão de que, provavelmente, não seja isso que a grande maioria dos endividados precise ouvir. Porque, como disse antes, não é que o pessoal esteja gastando demais apenas. O trabalho, em relação ao capital, continua muito mal remunerado no Brasil. Alguém ganha com isso, mas não é a maioria de nós.

 

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.