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Leonardo Sakamoto

Direito à cela especial deveria valer para todo mundo. Ou para ninguém

Leonardo Sakamoto

27/11/2012 09h23

A desigualdade social se manifesta de diversas formas, algumas mais tacanhas que outras. A prisão especial provisória para quem tem diploma de curso superior, na minha opinião, é uma das mais descaradas.

Se duas pessoas cometem o mesmo crime, mas um delas estudou mais, esta poderá ficar em uma cela especial, separada dos demais presos. Se a outra tiver, digamos, até o ensino médio, terá que aguardar o julgamento com a massa, na xepa.

O artigo 5° da Constituição Feeral diz que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Mas, na prática, a legislação brasileira confere o privilégio de não ficar em cárcere comum até o trânsito em julgado de uma decisão penal condenatória para quem os que são mais iguais que os outros.

A discussão não é nova, mas ganhou novamente o noticiário com ações da Polícia Federal, a condenação de crimes do colarinho branco e os julgamentos de corrupção.

Quem teve acesso à educação formal desfruta de direitos sobre quem foi obrigado, em determinado momento, a escolher entre estudar e trabalhar. Ou que, por vontade própria, simplesmente optou por não fazer uma faculdade. Afinal de contas, só o pensamento mais limitado é capaz de considerar alguém superior por ter um bacharelado ou uma licenciatura. Posso ter mais conhecimento técnico em determinada área, mas isso não faz de mim uma pessoa melhor.

O Senado Federal havia derrubado essa aberração presente no artigo 295 do Código de Processo Penal, mas a Câmara os Deputados barrou a mudança.

Concordo com a opinião dos juristas que ressaltam que estamos tratando de prisão provisória. Ou seja, considerando que, antes do julgamento e de uma condenação, há a presunção da inocência, seria importante que o regime desses presos fosse diferenciado. Mas, nesse caso, teria que valer para todo mundo – do iletrado ao que tem pós-doutorado. Assim, não seria a concessão de um privilégio, mas a garantia de um direito.

Contudo, há um tempero novo nesse caldo: está mudando o perfil de quem tem curso superior no Brasil.

Antes, o número de faculdades particulares era pequeno e as suas mensalidade altas, ao passo que os vestibulares das universidades públicas eram duros o bastante para quem estudou a vida inteira em escola pública e não tinha dinheiro para pagar um cursinho. Não que o acesso tenha se universalizado, longe disso, mas ao mesmo tempo que aumentou o número de vagas em públicas federais (ainda que continuem bem insuficientes, diga-se de passagem), explodiu a quantidade de faculdades privadas, com mensalidadades acessíveis – e qualidade muitas vezes duvidosa. O fato é que muita gente do andar de baixo passou a obter diplomas de nível superior.

Quando muitos têm uma calça exclusiva, ela deixa de ser exclusiva e passa ser popular. Qual seria o próximo passo? A construção de mais celas especiais ou a criação de outros critérios para garantir que os bacanas continuem separados da ralé, agora com diploma?

Por enquanto o andar de cima não perdeu nada, por mais que os mais ricos reclamem que o povaréu tupiniquim ascendeu e está invadindo aeroportos e tirando seu sono.

Mais simples e melhor continua sendo o método: "tenha um advogado caro e seja feliz".

Com isso, você pode cometer as maiores barbaridades, como matar a namorada ou desviar milhões, que dificilmente ficará preso aguardando julgamento. E, mesmo julgado, conseguirá o direito de ficar em casa até que todos os recursos sejam esgotados – o que pode levar mais tempo do que aquele que lhe resta de vida. Com um advogado caro, é possível até conseguir habeas corpus no Supremo Tribunal Federal de forma rápida e sem burocracias. Por que eles compram resultados? Normalmente, não. E sim porque eles têm recursos para garantir todos os direitos possíveis aos seus clientes.

Talvez a cela especial acabe quando o acesso ao ensino superior tornar-se tão comum quanto a alfabetização – o que pode levar algum tempo, mas há de acontecer.

Ou seja, não terá sido mérito nosso como sociedade essa mudança, mas do tempo, que – inexoravelmente – transforma tudo.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.