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Leonardo Sakamoto

O que você espera encontrar em uma manhã de domingo?

Leonardo Sakamoto

17/02/2013 07h22

Fumando um cigarro da janela do seu quarto, ele se perguntava a razão de nunca ter visto um nascer do sol com o amor de sua vida. Decidido a mudar isso, virou-se para trás para acordá-la. Afinal, a chuva havia passado e o céu desrespeitava o pantone, criando alguns tons que ele nem imaginava que existiam. Mas deteve-se diante da paz que o sorriso dela transmitia – quase como um daqueles malcriados avisos de "Não Perturbe" pendurados, há séculos, nas portas de hotéis. Conformado, acendeu outro cigarro e proseou com a fumaça sobre a razão de tanta gente se acotovelar diante da jocosa senhora de Da Vinci quando sorrisos mais enigmáticos se repetem, dia após dia, em camas, redes, esteiras ou mesmo no chão frio e na dura terra batida sem que ninguém saque seu celular para tirar uma foto sequer.

Assim que a rua se fez visível, reconheceu a faxineira da casa à frente vindo de longe a pé, provavelmente do metrô. Nessas horas, são poucos os ônibus que despertaram. Ela claudicava insistentemente da perna direita e, por duas vezes, deixou cair o lencinho com o qual secava o suor. Parecia o lenço de sua finada avó, daquelas estampas vermelhas da década de 60, que sua mãe ainda guardava por questões sentimentais, mas que era muito demodê para tirar da gaveta. Assobiou os primeiros versos de "Gente Humilde", mas se conteve. Isso soava tão brega quanto o lenço e, provavelmente, não contaria com a anuência nem de Chico Buarque, nem de sua namorada.

A duas tragadas de distância, surgiu um senhor negro montado em um paletó azul celeste que, certamente, ultrapassava em dois números o seu. Mal se via as mãos para fora da manga, contudo isso não diminuía o seu porte garboso, com se adentrasse a igreja na Festa do Divino. Não carregava bíblia, o que era de se esperar numa manhã de domingo, mas uma rosa branca. Era flor a ser dada ou flor recebida? Batendo a cinzas, torceu para que fosse flor recebida, fruto de uma noite passada em claro, fazendo cócegas nos pés de Deus e arranhando as portas do inferno. O distinto cavalheiro parou por um momento, puxou um cigarro de palha, acendeu e fechou os olhos à primeira tragada, retornando em pensamento para o lugar de onde não deveria ter saído. Vendo-o fumando na janela, fez uma breve reverência com seu chapéu de feltro antes de seguir caminhada, demonstrando uma cumplicidade da qual só os fumantes e os que apreciam a aurora são capazes de entender.

O gato preto da vizinha havia perdido a briga com o saco de lixo esquecido pelo coletor na noite anterior. Rondava aquele pacote verde, frustrado com a incompetência de suas garras, desejoso de algum peixe ou frango que jazia lá dentro. Tentaria ainda um último golpe se não fosse a barulhenta perua do entregador de jornais estacionando de mau jeito em frente ao prédio. O fato de um edifício com mais de 60 apartamentos contar apenas com um assinante deveria chocá-lo, mas lembrou-se que ele mesmo gastara um bom tempo tentando convencer o mocinho do telemarketing que não teria tanto peixe para embrulhar que justificasse tamanha montanha de papel. Sentiu um leve remorso por conta do emprego do rapaz, que está com os dias contados tanto quanto o datilógrafo e o sapateiro. Uma nuvem de fumaça foi trazida pelo vento quarto dentro e ele se virou para ver se isso atrapalhara o sono dela. O sorriso continuava lá.

Nem bem a kombi partiu, surgiu uma moça, com um belo vestido vermelho, caminhando perto do meio-fio. Dois córregos de lágrimas lavaram todo o rímel, marcando sua pele muito branca. Por um instante, em frente ao prédio, abraçou o próprio estômago, dobrou-se e chorou copiosamente. Era dor sentida, que come por dentro, daquelas que só os que amaram muito e perderam sabem bem de onde vem. Ele, que havia discutido com a namorada na noite anterior, sentiu um nó na garganta e a água se avolumar nos olhos. Ela olhou para cima e viu que ele entendia o que acontecera. Sorriu com o canto da boca, borrou ainda mais o rímel tentando enxugar as lágrimas com a palma da mão aberta e apertou o passo até sumir na esquina. Se, ao menos, tivesse aparecido alguns minutos antes teria, certamente, recebido o lenço da claudicante senhora ou a rosa do garboso senhor. A dor não passaria, mas teria o frescor das coisas de domingo a lhe fazer companhia.

Voltou para a cama, abraçou-a forte e dormiu.

Então sonhou que sua namorada estava na janela, fumando e se perguntando a razão de nunca ter visto um nascer do sol com o amor de sua vida.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.