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Leonardo Sakamoto

Pressionado pelo agronegócio, governo pode rever descanso de motoristas

Leonardo Sakamoto

20/02/2013 18h12

O governo federal admite a possibilidade de rever a "Lei do Descanso", como ficou conhecida a Lei 12.619/2012, que determina jornadas de no máximo oito horas diárias para motoristas em estradas e regulamenta o exercício profissional no transporte rodoviário brasileiro. Entidades que representam o agronegócio pressionam para a revisão e afirmam que, se efetivada, ela pode aumentar o valor de frete e encarecer o preço da produção agropecuária. Entre os principais interessados estão grandes produtores de soja, cujo cultivo no Centro-Oeste depende da rede rodoviária para atingir portos de exportação.

De acordo com as últimas informações disponíveis do Ministério da Previdência Social, o setor de transporte rodoviário de cargas ocupa o primeiro lugar em número de acidentes de trabalho fatais. Das 2.712 mortes que ocorreram em 2010, 260 foram no setor. Um relatório de 2010 da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) de São Paulo apontou que 52 dos 278 mortos em acidentes de trânsito envolvendo motocicletas e cuja profissão foi informada eram motofretistas. Se forem identificadas as profissões de todos os mortos em acidentes de trânsito, entregadores que usam motocicletas em cidades podem ser os campeões de óbitos nacionalmente. Mas faltam dados oficiais sobre o assunto por conta de subnotificação e não identificação de profissão.

A reportagem é de Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil:

Em 30 de janeiro, o secretário-executivo adjunto da Casa Civil, Gilson Bittencourt, reuniu-se para tratar do tema com Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), Associação das Empresas Cerealistas do Brasil (Acebra) e Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Procurada pela Repórter Brasil, em nota, a assessoria de imprensa da Casa Civil afirmou que "está analisando o pleito do setor" e confirmou que além da reunião com representantes do agronegócio, já foram feitas outras duas reuniões para tratar do assunto. A possibilidade de o governo retroceder preocupa o Ministério Público do Trabalho (MPT) e os sindicatos de motoristas. "Nos termos propostos, as mudanças vão mudar substancialmente o caráter protetivo da lei", avalia o procurador Paulo Douglas Almeida de Morais.

De acordo com os dados mais recentes do Ministério da Previdência Social, relativos a 2010, o setor de transporte rodoviário de cargas ocupa o primeiro lugar em número de acidentes de trabalho fatais. De 2.712 mortes ocorridas no ano, 260 foram de motoristas. Aconteceram 16.910 acidentes e, além dos mortos, 412 sofreram incapacidade permanente. Para o MPT, a "Lei do Descanso" é um importante mecanismo institucional para alterar esta realidade e proteger uma categoria profissional sujeita a muitas fragilidades trabalhistas.

O Brasil subscreveu Resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) que tem como meta a redução em 50% dos acidentes em estradas e divulgou, em 2011, o Plano Nacional de Redução de Acidentes e Segurança Viária para a Década 2011-2020. "O Poder Executivo, de um lado, lança uma campanha pelo trânsito seguro e, de outro, está querendo fragilizar uma legislação que vem exatamente para garantir segurança nas estradas. Isso denota uma postura hipócrita do governo federal", comenta Paulo Douglas.

Sobrecarga – Informações reunidas pela "Operação Jornada Legal", iniciativa conjunta do MPT e da Polícia Rodoviária Federal, apontam que as jornadas prolongadas são constantes no setor. Cerca de 88% dos motoristas cumpre acima de 8 horas diárias, sendo que 9% cumprem mais de 16 horas. Para aguentar tal carga, 12% admitem consumir drogas estimulantes durante o trabalho e 64% afirmam conhecer algum colega que faz o uso de substâncias químicas no trabalho.

A nova lei prevê paradas obrigatórias para os motoristas de 30 minutos a cada 4 horas dirigidas. Os representantes do agronegócio, defendem que o intervalo seja realizado a cada seis horas e que a inspeção só comece a valer mesmo depois de um ano, período no qual as ações teriam fins meramente educativos sobre a aplicação da norma, para que o setor possa fazer adequações logísticas necessárias. O prazo inicial para adaptação é de seis meses. Para justificar a pressão por mudanças na lei, o setor reclama um déficit de 50 mil motoristas e afirma que as novas regras encarecem o frete da produção. O posicionamento foi detalhado na última página da edição de janeiro da revista AgroAnalysis, publicação sobre agronegócio da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

A assessoria de imprensa da Associação das Empresas Cerealistas do Brasil (Acebra) afirma que a ministra Gleisi Hoffmann demonstrou-se favorável em "mitigar os impactos da legislação" e que também mostrou disposição para "receber sugestões de aperfeiçoamentos pontuais no texto da lei". Além da reunião, 10 associações de produtores enviaram uma carta cobrando alterações.

No Congresso Nacional, representantes da Frente Parlamentar da Agropecuária, conhecida como "Bancada Ruralista", também pressionam por alterações na nova lei. Em setembro de 2012, a Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados anunciou que pediria à presidência uma Medida Provisória para alterar a norma. Neste ano, parlamentares fizeram reuniões para estudar como modificar a lei. O assunto tem sido pauta recorrente da Câmara Temática de Logística do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, de acordo com informações da revista AgroAnalysis.

Direito dos motoristas – As possíveis alterações também desagradam setores laborais e do patronato do transporte rodoviário. "Quem vem se posicionando contrário à lei deveria justamente buscar aquilo em que a lei pode acrescentar", argumenta Flávio Benatti, diretor-executivo do setor de transporte de cargas da Confederação Nacional do Transporte (CNT), órgão representante de empresários do ramo rodoviário. Em entrevista à Reporter Brasil, ele indica que, antes de a lei ser aprovada pelo Congresso, o texto foi discutido entre vários setores, incluindo empregadores, trabalhadores e usuários do transporte. "Se há necessidade de correção na norma, que se faça, mas de maneira coerente. O governo deve chamar todas as partes envolvidas", lembra.

O representante da CNT também adverte que a lei é importante para garantir a segurança nas rodovias do país. "Nós somos contrários que não haja nada. Hoje nós temos uma situação com muitas pessoas morrendo nas estradas". Apesar de o governo federal ter sinalizado recentemente a redução do número de acidentes rodoviários, com a operação da "lei seca" durante o carnaval, dados apontam que mais de 40.600 pessoas morreram nas autopistas e vias urbanas brasileiras somente em 2010, segundo dados do Ministério da Saúde.

"Essa 'lei do descanso' é a 'lei da vida'. Vamos trabalhar no sentido de manter ela como está", diz Epitácio Antônio dos Santos, dirigente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Terrestres (CNTTT). Segundo ele, a entidade é contrária a qualquer alteração que possa fragilizar a garantia dos direitos dos motoristas do setor. "Caberia uma revisão na lei nos artigos que o governo vetou no momento da promulgação", completa. Entre as 19 artigos, incisos e parágrafos vetados pela presidenta Dilma Rousseff (PT), está o compromisso do Executivo em assumir ou incentivar a implementação de postos de descanso para o transporte rodoviário nas estradas, único ponto de consenso que poderia ser revisto na lei.

Trabalhadores, patrões e usuários avaliam que, para o melhor funcionamento da legislação, seria necessária a construção de mais locais com infraestrutura e segurança adequadas para que os motoristas pudessem obedecer às pausas determinadas pela "lei do descanso" sem problemas.

Lei ainda não saiu do papel – A "Lei do Descanso" já está valendo, mas ainda não saiu do papel. Ela foi regulamentada pela resolução 417/2012 do Contran, que limita sua aplicação a rodovias com postos de descanso adequados aos intervalos previstos. Tais estradas deveriam ser indicadas pelo Ministério dos Transportes e pelo Ministério do Trabalho e Emprego, mas este último órgão declarou não ter competência técnica para avaliar e indicar quais as que se enquadram nesta categoria, gerando um impasse.

Ao mesmo tempo em que o governo discute internamente como aplicar a lei, o MPT tenta forçar na Justiça sua aplicação imediata por meio de uma Ação Civil Pública. Questionando a resolução do Contran, com o argumento de que a lei deve valer para todas as estradas brasileiras de maneira geral e irrestrita, o órgão conseguiu um mandato de segurança em primeira instância.

A Advocacia Geral da União (AGU), no entanto, recorreu e conseguiu na Justiça no último dia 8 suspender o mandato de segurança com uma liminar. A juíza relatora do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (TRT-10), Cilene Ferreira Amaro Santos, justificou na decisão que "não verifica na determinação do Contran nenhuma ingerência no âmbito de atuação" e que a a resolução "não impede a fiscalização" da lei pelos agentes de Estado responsáveis por executá-la. A decisão, porém, não é definitiva e o caso segue na Justiça.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.