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Leonardo Sakamoto

Para garantir a alegria do Centro, toque de recolher na Periferia

Leonardo Sakamoto

27/02/2013 13h16

Passo boa parte do meu tempo livre na Vila Madalena. Mas fico irritado quando alguém age como se a região fosse o umbigo da cidade, o modelo de urbanidade ou a referência para o desenvolvimento da pólis. O bairro é ótimo, boêmio, abrindo espaço para manifestações artísticas e culturais, experiências gastronômicas e discussões políticas. Contudo, ao contrário do que muitos imaginam, o sol não gira em torno da grandiosa Mercearia São Pedro, onde almoço sempre. Muito menos a vida noturna da cidade se resume às ruas Wizard e Aspicuelta ou o padrão de moda é aquele ditado pelas lojinhas da rua Harmonia.

Estava conversando com um colega ontem que quebrava a cabeça para encontrar formas de garantir que os jovens da periferia pudessem usufruir do espaço da Vila Madalena. Na sua concepção de cidade "vilamadalenizada", eles estariam sendo desrespeitados no seu direito de viver tudo aquilo.

Vendo as estatísticas de assassinatos de jovens na periferia de São Paulo, diria, em primeiro lugar, que essa molecada está sendo desrespeitada no seu direito de viver e ponto.

Em segundo, tenho paúra no estômago quando alguém pensa que é necessário os jovens irem para o Centro, rua Augusta, Vila Madalena e afins para poderem ter acesso à diversão e à cultura. Pois, sem apoio de ninguém e, muitas vezes (e graças aos céus) ignorados pela indústria cultural, eles produzem uma vida rica em arte e em poesia, não raro brotados da adversidade.

É elitista, preconceituoso e pseudopaternalista esse tipo de declaração. Não raro, ouço de amigos coisas do tipo: "esse povo precisa de um banho de Chico Buarque". Na opinião destes, da "cultura certa". A clivagem entre o popular e o erudito (e a ignorância de fundir o erudito com o bom) é apenas parte dessa discussão. Esse tipo de pensamento, com a reafirmação de símbolos para separar "nós" da plebe, expressa mais preconceito de classe do que qualquer outra coisa. E, em um ímpeto quase jesuítico, a necessidade de catequisar vem à tona, para trazê-la à nossa fé.

Nos grandes centros, o consumo da chamada cultura regional tradicional ganhou espaço entre os mais ricos e formadores de opinião. Virou cult. É em cima dessa análise que muitos querem resgatar, forçosamente, um passado "menos selvagem" em que a população de determinado lugar consumia esse tipo de arte da qual também gostamos. Sem se atentar que as coisas mudam, ou que a indústria cultural tem seus processos – que fazem ricos empresários que, ironicamente, bancam esses mesmos formadores de opinião. Para rico, forró e sertanejo (universitários) e samba de raiz é coisa "popular", que merece sem incensada. Rap e funk, não, derivados de uma insistente subversão que ousa ir na contramão da política de contenção dos bárbaros que vivem além do fosso dos rios Tietê e Pinheiros.

As manifestações culturais e a vida noturna que pipocam longe do centro expandido da cidade não deixam nada a desejar às do centro. A não ser pelo fato de que, na prática, um garoto ou uma moça ricos podem ficar até altas horas na Vila Madalena, bebendo de forma segura. Enquanto que, se isso acontece na periferia, há o risco do mano ou da mina morrerem baleados ou em uma chacina.

"Ah, mas ouvi que a prima de uma amiga foi assaltada em um arrastão na semana retrasada em um restaurante caro nos Jardins. Eu também estou em risco!" O palavrão que tenho vontade de gritar ao ouvir uma titica como essa, que tenta sorrateiramente justificar que os mais ricos também seriam vítimas do mesmo genocídio de jovens pretos e pobres da periferia, não seria publicável. Genocídio do qual nós também temos responsabilidade.

É fundamental os moradores terem livre acesso à toda cidade e às trocas possíveis de serem realizadas entre diferentes jeitos de viver e modos de pensar. No que pese, é claro, a descarada política de segregação social levada a cabo pelo poder público, que fecha o metrô, quando este devia ser 24 horas, e não garante a circulação de ônibus com frequência digna entre o centro e a periferia, como ocorre em outras cidades globais.

Contudo, mais importante que isso, é garantir que esses jovens tenham acesso, em primeiro lugar, às suas próprias comunidades, divertindo-se nelas, produzindo sua música, sua poesia, sem o risco de levar uma "bala perdida" na nuca. Ao invés disso, com medo da "violência que brota da periferia" (alimentada por séculos de exclusão deliberada), decretamos uma espécie de toque de recolher aliado a um estado de sítio, em que jovens pobres são obrigados a ficar dentro de suas casas, sob o risco de serem mortos pela polícia, por milícias de policiais, por traficantes ou pela disputa de todos contra todos.

A elite de São Paulo só aceita as árvores que ela cultivar e não aquelas que, nadando contra a lógica, crescem nas frestras do asfalto, ficam bonitas, dando sombra e frutos. Cresci, com orgulho, no Campo Limpo, que já era pobre, mas não tão violento quanto hoje. Lembro que era difícil sair do bairro e ir para a "cidade", como minha mãe falava, porque o transporte era horrível. Mas o povo estava nas ruas, cantando, bebendo, rindo.

Hoje, a região vive um luto. Mas está acordando. E, quando isso acontecer, a cidade inteira vai ouvir.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.