Topo

Leonardo Sakamoto

Vamos taxar grandes heranças por um Brasil menos desigual?

Leonardo Sakamoto

26/03/2013 17h58

A ala engraçada dos meus leitores vai dizer que isso é inveja de pé-rapado ou uma glutona sanha comunista devoradora de criancinhas. Mas o Brasil deveria, urgentemente, ressuscitar o debate sobre a introdução de um imposto decente sobre grandes heranças.

É justo que todos que suaram a camisa e conseguiram guardar algum queiram deixar uma vida mais confortável para seus filhos e netos. Contudo, a partir de uma determinada quantidade de riqueza, o que seria apenas garantir conforto transforma-se em transmissão hereditária da desigualdade social e de suas conseqüências.

Nesse sentido, quem tem muito deveria, ao passar desta para a melhor, entregar a maior parte do possuía para proporcionar oportunidades a quem tem menos. Atenção: não estou dizendo para entregar dinheiro vivo a quem não tem nada, caros leitores que não gostam de ler. Estou falando em usar os recursos para a execução de políticas públicas de educação, cultura, lazer, moradia, alimentação, enfim, vocês entenderam, direitos básicos. Afinal de contas, como é possível que, por lei, todos nasçam iguais em direitos se alguns vêm ao mundo sistematicamente "mais iguais" que outros?

Dessa forma, dentro de algumas gerações, conseguiríamos suavizar esse degrau brutal entre as diferentes castas brasileiras. Novamente, não estou sugerindo que todos usem uniforme caqui, morem em alojamentos coletivos e cozinhem ensopado de batata. Pois o ultrajante não é alguém morar em um apartamento de 400 metros quadrados enquanto outro vive em um de 40. O que me desconcerta é alguém desfrutar de um apê de 4 mil metros quadrados enquanto outro apanha da polícia para manter seu barraco em uma ocupação de terreno, seja em São José dos Campos, Eldorados dos Carajás, São Paulo, onde for.

Alguns vão dizer que estou louco, que isso vai contra a ideia de propriedade privada, pilar sobre o qual nossa civilização está (infelizmente) construída. E que, sem a possibilidade de herança, tudo vai desmoronar, ninguém vai querer investir no desenvolvimento do país, viveremos em cavernas plantando juta para roupas costuradas com espinho de peixe e faremos chá de capeba ou pariparoba para curar todas as doenças.

Mas vejamos o que acontece lá fora. Não precisamos ir muito longe, é só procurar um país socialista. Os Estados Unidos, por exemplo. Lá, os impostos de herança podem devorar até 40% dos bens se a pessoa for muito rica. Até porque há uma progressividade: quanto mais rico, maior a porcentagem cobrada. E há uma teto de isenção de cerca de 5 milhões de dólares por pessoa.

Para quem não sabe, uma das razões que leva aos bilionários norte-americanos a criarem fundações e transferirem seus fundos a elas é que essa doação conta com isenção tributária. Além disso, o doador pode continuar usando o valor doado em vida de forma isenta. Ou vai para a caridade ou para o Estado. Melhor, porém, do que ir para a própria prole. Ainda mais quando ela não respeita a vida humana e é do tipo que atropela ciclista em alta velocidade com um Mercedes-Benz SLR McLaren.

Por aqui, nós temos o Imposto sobre Transmissão, Causa Mortis e Doação (ITCMD), que pode adotar valores como 2,5%, 4% ou 6%, com tetos de isenção que chegam a algumas centenas de milhares de reais, variando de Estado para Estado. Mas isso ainda é muito pouco. Quase não faz cócegas, quando não é subnotificado e sonegado.

A força de um futuro imposto sobre heranças, que morda progressivamente, na proporção do tamanho da fortuna, não reside apenas nos recursos que ele é capaz de arrecadar, mas no simbolismo de um Estado que assume o papel de corrigir distorções históricas e de tratar desiguais de forma desigual.

Ele tem o mesmo DNA de projetos como a redução da jornada de trabalho sem redução de salário, aumento da licença maternidade, taxação de grandes fortunas, correção dos índices de produtividade da terra, entre outros, que são tratados por muitos como o tabu de dormir com a mãe.

O então senador Fernando Henrique Cardoso, antes de pedir que esquecessem o que ele escreveu, defendeu a taxação de grandes fortunas no Congresso Nacional. Luiz Inácio Lula da Silva, antes de se tornar o queridão do mercado, também defendia abertamente a redução na jornada de trabalho. O poder muda as pessoas, é fato. O pior é ter que ouvir dos próprios que eles não mudaram, apenas ganharam uma consciência ampliada a partir da cadeira que ocuparam.

Já disse aqui e repito: isso me leva a crer que a culpa por tudo isso é da maldita cadeira do Palácio do Planalto. Ela tem um encosto e precisa de uma sessão de descarrego antes que faça novas vítimas. Urgentemente.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.