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Leonardo Sakamoto

Os protestos contra a Copa nasceram antes de o Brasil ser anunciado como sede

Leonardo Sakamoto

25/06/2013 12h15

Entendo que há emissoras que são parceiras da Fifa nas transmissões e que, por conta disso, evitam ir muito à fundo ao tratar dos protestos contra grandes obras relacionadas à Copa das Confederações. Mas fariam um favor supremo se ajudassem aos seus telespectadores a entenderem que não é de agora que essa "horda de bárbaros" que protesta em torno dos estádios de futebol está possessa. Se bem que até um tatu-bola com problemas de aprendizagem já estava sabendo que, quando chuteiras começassem a correr nos gramados, essa bomba explodiria, considerando a raiva que muita gente está sentindo das nababescas instalações desportivas em comparação com a vida cotidiana. Pão e circo tem limite.

As manifestações pela revogação no aumento da tarifa, e a consequente violência policial contra elas, trouxe um mundaréu de pessoas e suas pautas às ruas. Entre elas, os que estavam com os efeitos colaterais do desenvolvimento entalados na garganta. Nos últimos anos, o Brasil se tornou um imenso canteiro de obras visando à Copa do Mundo, às Olimpíadas, à produção de energia elétrica, à construção de casas e escritórios, à prospecção de petróleo e gás, isso sem contar as obras-fantasma previstas em compromissos de campanha.

O problema é que havia gente morando nos locais escolhidos para essas obras.

Então, a fim de garantir que ninguém interrompesse este país (um gigante que caminha impávido para cumprir seu destino glorioso), remove-se, expulsa-se, retira-se. Degreda-se. Para onde? Pouco importa, contanto que não atrapalhe a marcha em direção ao futuro (BG: Sobe som do Hino Nacional e mãozinha sobre o coração).

Certo dia, um fazendeiro português com terras no Mato Grosso disse a Pedro Casaldáliga, símbolo da luta pelos direitos do campo no Brasil, para justificar o injustificável: "Dom Pedro, o senhor é europeu, o senhor sabe. As calçadas de Roma foram feitas por escravos. O progresso tem seu preço".

Falar sobre a política higienista das grandes metrópoles e de seus governantes é quase chover no molhado. As empresas de ônibus, as empreiteiras e os especuladores imobiliários estão lá, doando recursos de campanha, emprestando parentes para cargos públicos, influenciando o cumprimento e o não cumprimento de regras (o plano diretor da cidade de São Paulo que o diga). E existe maior atentado à dignidade humana que a remoção de pessoas, no campo ou na cidade, que não têm para onde ir sob um injustificável bem maior?

Qual a diferença de descer porrada em indígenas no Amazonas e Roraima para construir uma estrada durante a Gloriosa e lançar balas de borracha em uma comunidade pobre em São José dos Campos para erguer um empreendimento? Ou encher um grupo de jovens que protestavam contra a tarifa do ônibus e jornalistas que apenas faziam seu trabalho com gás lacrimogênio porque não estavam em casa vendo novela ou no bar bebendo?

Como já disse, dá vergonha alheia ver setores do governo federal ultrajados com a tragédia humana que ocorreu no Pinheirinho, em São José dos Campos, em janeiro do ano passado, mas que mantiveram silêncio diante da ignomínia dos últimos dias. O discurso de Dilma não trouxe uma merreca de palavra condenando o abuso de força policial. A arruaça era das pessoas, não da polícia? Ahã, Cláudia, senta lá.

Ao mesmo tempo que pede paz nas ruas, a União está jogando o trator em cima de ribeirinhos, camponeses e indígenas para a construção de usinas hidrelétricas, como a de Belo Monte, no Pará. Em nome do progresso – o mesmo do fazendeiro interlocutor de Casaldáliga. Violência estatal não é só dar porrada com cassetete. Ela pode vir através de financiamento público abundante também. É mais limpo e não cheira a gás.

O governo brasileiro inundou o país com bilhões em recursos para a construção, com o objetivo de modernizar a infra-estrutura e erguer moradias, girando a economia. Só que "esqueceu" de uma coisa: com o mercado imobiliário aquecido, a busca por áreas urbanas para a incorporação levaria à expulsão de comunidades pobres que disputam a posse de terrenos. Se a Justiça considerasse sempre a função social da propriedade para tomar suas decisões, como está previsto na Constituição Federal, a história seria diferente e essas comunidades teriam direitos preservados. Mas se o Coelhinho existisse, talvez eu tivesse ganho o ovo de chocolate que tanto queria na última Páscoa. Ou se Papai Noel fosse de carne e osso, obras para a Copa não desalojariam ninguém de forma questionável.

A questão trabalhista na construção civil está uma calamidade – protestos na usina hidrelétrica de Jirau, que levaram a um quebra-quebra, são a cereja do bolo. Ao longo dos anos, pipocaram manifestações de trabalhadores nas obras de estádios para a Copa do Mundo, como em Recife e no Rio de Janeiro, e casos de trabalho escravo (artigo 149 do Código Penal) em obras de moradia. Em empreendimentos pertencentes ao "Minha Casa, Minha Vida", o Ministério do Trabalho e Emprego já libertou muita gente.

E querem saber o melhor de tudo isso? O grosso da população brasileira não se importou. Brinda com Johnny Walker batido com Activia e nem olha para o lado. Assistiu ao Estado tocar o diabo em pequenas comunidades para tornar o crescimento viável. Acha um absurdo exageros (contra o patrimônio, é claro), como todo cordial brasileiro, mas também não se importa em saber como o seu apartamento, energia elétrica, estrada ou estádio foram feitos. Quer ser abençoado e permanecer na ignorância.

Lembro-me do ensaio "O Fausto de Goethe: A Tragédia do Desenvolvimento", de Marshall Berman. Fausto vendera sua alma em troca de experimentar as sensações do mundo. Mas o diabo não é o Lúcifer da cristandade, não representa o mal em si, mas sim o espírito empreendedor capitalista e burguês. A mentalidade que fomenta Fausto ("destruir para criar") é a realidade em constante movimento (Mefistófeles perguntava a ele se Deus não havia destruído as trevas que reinavam no universo para poder criar o mundo).

No meio do caminho estavam Filemo e Baúcia, um casal de idosos. Eram um empecilho para os planos do empreendedor Fausto e precisavam ser removidos. Quando Mefistófeles queima a casa da dupla, assassinando-os, não quer Goethe provar a sua maldade, mas expor exatamente o contrário: joga-se o empecilho fora criando a ideia de que o mal (o casal idoso) precisa ser extirpado para que a sociedade cresça. Caem os limites morais. O desenvolvimento não possui padrões éticos, além da ética que cria para si mesmo.

É ótimo que, após o Movimento Passe Livre ter nos organizado para alcançar a revogação no aumento das tarifas, outras pautas tenham vindo à público. Como já disse, milhares de jovens foram à ruas descontentes, insatisfeitos, indignados. Tem algo pulsando muito forte dentro de cada um. A percepção obtida com as vitórias alcançadas nas ruas é que mudar é possível, sim, ao contrário daquilo que seus pais lhes disseram. Muitos não têm formação histórica ou política alguma e, como já escrevi antes, este é o momento de discutir isso com eles.

Falar de saúde, educação e corrupção é fácil. Difícil mesmo é discutir publicamente se nós, os mais ricos, estamos dispostos a ceder para que os mais pobres deixem de ser tão pobres. Afinal, as lembranças da desocupação forçada do Pinheirinho ou dos incêndios nas favelas de São Paulo irão durar na cabeça da classe média até que empreendimentos bonitos fiquem prontos no lugar. Males a serem extirpados em nome do progresso e do futuro.

Por mais fraca que seja, essa memória não se apaga nos diretamente envolvidos. Fica lá, latente. E, quando há uma oportunidade, como uma Copa das Confederações, ela vem à tona, trazendo a indignação de quem teve sua cidadania excluída para a construção das estruturas nas quais não se vê refletido. Muitos colegas ouviram gritos de gente que foi às ruas protestar por ter perdido um pedaço de sua vida em nome da Copa. Mas não eram gritos de raiva.

Eram de algo muito maior e mais assustador.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.