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Leonardo Sakamoto

O jornalista amava o pageview, que amava o anunciante, que amava o consumidor. Que não quer pensar sobre isso

Leonardo Sakamoto

28/08/2013 18h43

Sabe o que deprime de verdade? Não são os milhares de comentários malucos ou mensagens esquisitas que circulam na internet. Pelo contrário, isso expõe a natureza humana sendo, portanto, divertido e útil, principalmente para antropólogos, psicólogos e historiadores do futuro. Mas uma reportagem bem feita, apurada, acessível e relativamente interessante ao leitor/ouvinte/telespectador, trazendo uma informação que vai mexer profundamente com a vida das pessoas, simplesmente passa batida porque o assunto é chato.

É claro que alguns repórteres já percebem isso na pauta. Sabem que têm nas mãos algo relevante, tentam fazer o melhor para que o assunto fique palatável e consumível, ainda mais com ferramentas multimídia que permitem trocar o velho "bota uma foto para ficar mais leve" por algo interativo, com uma linearidade construída por cada internauta, levando a um processo cognitivo diferenciado. Mas, no final, sabe que meia dúzia de pessoas vão consumir aquilo.

Atenção, não estou falando das matérias hipercodificadas do pragmatismo redacional que criam sua pseudo-realidade emulando um universo próprio que impossibilita a correta interpretação do vernáculo. Mas sim daquelas que o jornalista não se faz de besta, nem de metido, e consegue falar com seu leitor. Em tese, todos os assuntos podem ser tratados. Basta dedicação, criatividade e tempo – commodity cada vez mais preciosa nas reduzidas redações.

Pode até rolar muitos compartilhamentos, curtidas e tuitadas. Porém, pelos resultados de longo prazo, saberá que aquilo foi vazio, guiado pelo fetiche de mostrar aos outros que você está antenado ou porque é cool reproduzir postagens de alguém conhecido.

Os colegas que trabalham em sites e portais sabem bem do que estou falando. Editores não são burros. Entendem que é importantíssimo dar destaque a certos temas fundamentais à vida das pessoas. Mas sabem também que se destacarem peito, bunda, merda, sangue, lágrimas ou um filhote de cachorrinho norte-coreano que assobia a Internacional Socialista, os pageviews vão explodir. E, não se engane: os pageviews controlam anunciantes. E os anunciantes controlam o mundo. Há gente boa que se contorce para fugir dessa fórmula. É difícil.

Qualquer blogueiro que cuida de notícias pode dar um depoimento sobre isso. Posts que tratam de temas em que todo mundo tem uma opinião bombam loucamente. Aqueles que falam de assuntos que ninguém nunca viu raramente seguram a atenção do leitor por mais de 30 segundos a fim de que ele entenda o que aquilo significa e qual a relação para a sua vida. Atire a primeira pedra quem nunca apelou para uma saída fácil a fim de fisgar leitores para algo áspero? É difícil pautar coisas novas. A TV, com seu poder de hipnose, ainda faz isso melhor do que qualquer outra mídia.

Sei que a gente tem um enorme caminho a percorrer para reinventar a forma de se fazer jornalismo. Não é porque um tema é importante que as pessoas vão querer consumi-lo. Transformar algo difícil em palatável e atrativo é duro. Escrever de forma simples e com linguagem acessível também – é engraçado que, ao contrário de muitos outros países, por aqui há um abismo entre a língua falada e a escrita.

Ah, mas o povo não gosta de bunda de homem e de mulher? Sim, mas nós realimentamos isso com a superexposição. Nunca me esqueço que a série "Hoje é Dia de Maria" teve uma bela aceitação na rede Globo por mais que não adotasse uma estética popular para a surpresa de muitos cri-cri-críticos. Ah, mas não é arrogância escolher o que o povo quer e o que o povo não quer? Esse debate entre interesse público e interesse do público é longo e não vou adentrá-lo. Até porque muito já se escreveu sobre "informar o que eu e/ou o local em que trabalho consideramos importante para outra pessoa saber" e "o que ela quer realmente saber" e a difícil tarefa de se equilibrar entre esses dois processos. O problema é que, até agora no jornalismo convencional, você consume sem querer muita coisa pois a informação é posta de forma vertical. Enquanto que, via redes sociais, você consegue o que quer. Mas o que você quer não necessariamente é suficiente. E aí, o que fazer?

Quem resolver equação, vira o mestre do magos do jornalismo.

Inserido no fluxo comunicativo emissor – mensagem – receptor, o texto é obra aberta, polissêmico. Claro, nem tudo é relativo: dizer isso não equivale a afirmar que qualquer significado é possível. Na grande maioria dos casos, o problema é a falta de familiaridade com o texto escrito. Daí a incapacidade de entender "direito" o que está escrito. E de escrever "direito" o que se quis dizer. Com a internet as pessoas estão escrevendo para seus próprios grupos, dentro de seus próprios campos simbólicos. Bem, se conseguirmos indivíduos ou organizações que filtrem e traduzam determinadas informações hipercodificadas para esses grupos, teremos a beleza de conseguir democratizar mais conhecimento. Diariamente ajudamos a forjar símbolos coletivos que valem para uma grande gama de pessoas de Norte a Sul do país (a tristeza é que, se você quiser falar de "tchu" e de "tchá" diante de uma ameaça de um "ai, se eu te pego" será bem mais fácil do que discutir discriminação de gênero…)

Por isso, talvez o maior desafio seja trabalhar desde cedo com a criançada para que fuja da alienação e acostume-se a buscar informação necessária para ser protagonista de sua própria vida. Não apenas educar – que é ensinar aos tijolos o seu lugar no muro – mas conscientizar para uma visão crítica da sociedade e de si mesmo, o que é subversivo e delicioso. Parte da moçada que foi às ruas em junho era alheia ao mundo, achava que o alfa e o ômega estava ali, na sua frente. Não conhecia o que veio antes e, portanto, não conseguia entender o que poderia vir depois. Culpa nossa.

De cidadãos. De jornalistas.

Enfim, eu também ia me lamuriar sobre como algorítimos de algumas redes sociais dificultam a distribuição de posts que citam grandes empresas anunciantes delas, mas isso fica para outra hora.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.