Topo

Leonardo Sakamoto

Queria o mundo de contos de fadas dos comerciais de celulares

Leonardo Sakamoto

23/09/2013 11h03

Uma senhora de cabelos brancos passou alguns instantes prostrada diante do orelhão cujo gancho havia sido arrancado e piava sem parar. Indignada, virou-se para mim, que esperava para atravessar na faixa de pedestres ao lado, e olhou-me com todo o cansaço do mundo.

Não que ela não tivesse um celular. O problema é que, no Brasil, dezenas de milhões têm aparelhos, mas a tarifa cobrada pelas operadoras é uma das mais caras do planeta. Os poucos reais de crédito que ela colocara no pré-pago haviam sumido. Tentaria a sorte com o velho cartão telefônico. Se houvesse um telefone.

É claro que havia um outro orelhão na quadra seguinte, mas qualquer ser que não latisse emprestaria o próprio telefone a fim de que ela ligasse para o trabalho da filha.

Ironicamente, o orelhão pertence à mesma empresa que o celular dela.

A operadora não é a responsável pela destruição do orelhão, feita por algum cabeça de toupeira com problemas de autoestima. Mas é culpada por não garantir manutenção adequada. Neste domingo, dias depois, passei por lá só para ver se já tinha sido consertado. E olha só:

As operadoras põem a culpa do preço da ligação na taxa de interconexão (o uso das redes umas das outras), na necessidade de recursos para o desenvolvimento do sistema, no baixo carregamento nas linhas pré-pagas, nos impostos, no Godzilla, no César, no Félix, na Pilar, enfim. Mas esquecem de dizer que o mercado de telecomunicações no Brasil é ótimo para as corporações.

Ruim mesmo tem sido para o consumidor, que paga alto por um serviço e de qualidade duvidosa, sempre entre os primeiros nos rankings de reclamações do Procon-SP.

Até aí, nenhuma novidade.

Só queria que senhoras pobres de cabelos brancos pudessem viver no mundo de contos de fadas dos comerciais das empresas de telecomunicações.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.