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Leonardo Sakamoto

São Paulo está morta! Longa vida a São Paulo!

Leonardo Sakamoto

29/09/2013 03h31

Ao abrir o jornal, levei um tapa de um anúncio gigante sobre um novo empreendimento imobiliário na Zona Sul de São Paulo, às margens do rio Pinheiros. Apresentando mudanças urbanas em cidades como Nova Iorque e na própria capital paulista, levadas a cabo pelas empresas envolvidas nesta nova horta de prédios, ele diz:

Sem entrar no mérito sobre as mudanças positivas e negativas pelas quais passou o bairro da Vila Olímpia, adorei a sinceridade do "contendo apenas pequenas casas".

Pequenas casas que, feito ervas daninhas, devem ser retiradas para permitir a marcha inexorável do progresso?

Isso é tão bandeirante…

Quando a ocupação de determinados espaços interessa às classes que detém o poder econômico, elas elaboram mitos e criam heróis. Para impor seus objetivos por meio do aparelho jurídico e administrativo do Estado, são construídos suportes de legitimação que mostrem que os seus próprios interesses são, na verdade, interesses de todos e, principalmente, daqueles que vão pagar o pato. Ou seja, fazem você acreditar que o que é bom para eles é bom para você.

A construção desse suporte ideológico culminou em slogans como "Terra sem homens para homens sem terra", utilizado pelos verde-oliva. Apesar de adaptado ao novo momento, ele não foi uma novidade, mas um último produto de uma ideologia da colonização que, como lembrou Otávio Velho, contou com Cassiano Ricardo, em sua "A Marcha para o Oeste", e o nacionalismo de Getúlio Vargas através de seus discursos sobre a necessidade de colonizar a Amazônia e integrar o Oeste do país ao litoral.

O slogan tinha o objetivo de transmitir a ideia de que a Amazônia é um grande deserto verde, desabitado. Contudo, uma olhadinha rápida demonstra a falácia presente na utilização desses discursos, uma vez que terras almejadas pelos novos empreendimentos agropecuários e extrativistas eram e são, na verdade, habitadas por populações indígenas, ribeirinhas, quilombolas, posseiros e colonos. O que esse slogan encobre é que a Amazônia não é e nunca foi um vazio e que a imagem de "deserto verde" é uma construção que serve às forças econômicas interessadas em ocupar a região.

Muitas vezes, os posseiros que ali chegaram por conta própria, acreditando nesse slogan, foram transferidos de suas propriedades depois de "amansar" a terra para os grandes empreendimentos. Parte deles foi colocada em programas oficiais de colonização e acabou servindo de mão de obra barata, enquanto outros expulsos de suas terras seguiram para os municípios, também engrossando a força de trabalho disponível e barata para a agropecuária e o extrativismo, além de empresas nos centros urbanos. Há os que decidiram resistir e permanecer em suas terras ou ocupar áreas griladas ou improdutivas, em uma história que vai dos conflitos dos posseiros na região do Bico do Papagaio, Norte do atual Estado do Tocantins, na década de 70, até os projetos sustentáveis, como o de Anapu (pela qual morreu Dorothy Stang) e o de Nova Ipixuna (no qual tombaram Maria e Zé Cláudio.

Afinal de contas, como todos sabemos, se é um deserto, não tem ninguém. E passar por cima de "ninguém", não é crime. Certo?

Terra sem homens para homens sem terra. Bairro com apenas pequenas casas para gente sem bairro.

Já citei o ensaio "O Fausto de Goethe: A Tragédia do Desenvolvimento", de Marshall Berman aqui, mas vale retomar, pois cai como uma luva. Fausto vendera sua alma em troca de experimentar as sensações do mundo. Mas o diabo não é o Lúcifer da cristandade, não representa o mal em si, mas sim o espírito empreendedor capitalista e burguês.

A mentalidade que fomenta Fausto ("destruir para criar") é a realidade em constante movimento (Mefistófeles perguntava a ele se Deus não havia destruído as trevas que reinavam no universo para poder criar o mundo).

No meio do caminho estavam Filemo e Baúcia, um casal de idosos. Eram um empecilho para os planos do empreendedor Fausto e precisavam ser removidos. Quando Mefistófeles queima a casa da dupla, assassinando-os, não quer Goethe provar a sua maldade, mas expor exatamente o contrário: joga-se o empecilho fora criando a ideia de que o mal (o casal idoso) precisa ser extirpado para que a sociedade crescesse. Caem os limites morais. O desenvolvimento não possui padrões éticos, além da ética que cria para si mesmo.

As lembranças da desocupação forçada do Pinheirinho ou dos incêndios nas favelas de São Paulo irão durar na cabeça da classe média até que empreendimentos bonitos fiquem prontos no lugar. Males a serem extirpados em nome do progresso e do futuro.

Os antigos proprietários das "pequenas casas" fizeram bons negócios? Não duvido. Mas fico preocupado por uma cidade que passa por cima do seu passado, associando-o, de forma equivocada, a algo ruim ou insignificante no intuito de avançar. E avançar. E avançar. Para onde? Pouco importa.

O que importa é que o movimento de mudança seja constante. E que alguém ganhe com isso.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.