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Leonardo Sakamoto

Ok, confesso. Eu acredito na Mega-Sena, padroeira das causas impossíveis

Leonardo Sakamoto

08/10/2013 12h11

Um leitor escreveu longo e-mail me acusando de ser uma pessoa sem fé.

E, segundo ele, uma pessoa sem fé é incapaz de entender a natureza humana.

E que, portanto, uma pessoa sem fé está fadada ao abismo da solidão.

E que não consegue entender como alguém fala de questões sociais e despreza a fé.

Errou feio. Errou rude.

Se não tivesse fé, não jogaria, religiosamente, na Mega-Sena.

Por que apaguei os números? Porque eu sou mesquinho

E não faria planos para o dinheiro, incluindo uma distribuição básica para remendar a parentaiada toda.

E não faria uma longa lista mental de mimos para alegrar os amigos, desprezando os fariseus.

E não pensaria em como seria possível lançar um jornal, ajudar a reforma agrária, criar uma faculdade gratuita, financiar alguns movimentos sociais, apoiar o Palmeiras e quitar (parte) das dívidas que tenho hoje com o montante do prêmio.

E não correria para a internet a fim de checar as dezenas como se tivesse chance real, ficando irritado com o site da Caixa que trava na hora errada.

E não ficaria decepcionado quando constatasse que acertei apenas um maldito número. Logo aquele que marquei por engano.

E, depois de alguns dias prometendo que nunca mais jogaria novamente – feito aquelas promessas que a gente faz, abraçado ao vaso sanitário em solitárias madrugadas, de nunca mais misturar vodka Birloff e cerveja morna – não entraria numa lotérica minutos antes do horário limite para apostas no sábado e faria um joguinho despretensioso, levando junto uma raspadinha.

É mais provável ser assediado por um meteorito do que ganhar na Mega, eu sei.

Mas isso não me levará ao abismo. Nem à bancarrota. No máximo, vou ter que cortar a sidra do ano novo.

Talvez a escolha de seis dezenas seja um necessário escape para a racionalidade maluca do nosso dia a dia. Uma forma de dar vazão aos sonhos que a gente faz caber na vida possível do cotidiano. Ou da conta bancária. E não estou falando em dinheiro para poder ter, mas ter recursos a fim de poder fazer.

Mas, até aí, caro leitor do e-mail longo, o dízimo também não te deixa mais rico. E enquanto tenho uma chance em 50 milhões de ganhar, não há estimativa plausível para a vida após a morte.

Não, não me entenda mal. Não estou dizendo que minha fé é mais legal que a sua.

Apenas deixando claro que você não é o único que não entende alguém por aqui.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.