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Leonardo Sakamoto

Quando você "pirateia" um filme, uma família de pandas morre na China

Leonardo Sakamoto

07/11/2013 12h52

Grandes estúdios de Hollywood estão reclamando que os serviços de busca na internet não estão fazendo tudo o que podiam para impedir os internautas de encontrarem conteúdo "pirateado" na rede.

(suspiro de preguiça)

De tanto ouvir e ver propagandas em rádios, TVs e cinemas que fazem o consumidor sentir-se um pedaço de titica, financiador do tráfico de drogas, responsável pelo desemprego, pela fome no mundo e pela pichação de muros do Justin Bieber, por não se atentar à pirataria dos CDs e DVDs que compra ou dos arquivos que baixa, creio que se faz necessária uma pergunta: empresas de software, gravadoras e a indústria do entretenimento em geral aplicam o mesmo terror em suas relações comerciais?

Inexiste, por parte de muitas delas, uma política para evitar a compra de equipamentos eletrônicos (utilizados na criação de programas, gravação de músicas, filmagens de películas) que contêm crimes contra a humanidade e o meio ambiente em seu processo de fabricação. As únicas restrições que impõem são: que o produto tenha preço baixo e a qualidade técnica desejada.

Enquanto isso, a indústria de aparelhos eletrônicos consome proporções cada vez maiores de minérios preciosos e raros encravados pelo mundo. Muitos desses metais são extraídos em minas de países pobres nas quais trabalhadores, crianças e adultos, enfrentam condições aterradoras. Ou comunidades são removidas para dar mais espaço para a mineração. Fora a contaminação da água e a poluição do solo. Isso sem contar que, depois, essa matéria-prima se transformará em componentes que, por sua vez, serão montados não raro com a superexploração de trabalhadores chineses, brasileiros, mexicanos.

Alguns vão dizer que é ilegal baixar músicas e copiar DVDs, mas comprar de quem escraviza e desmata para a produção de matéria-prima não é? A resposta sobre o porquê de o mundo ser assim reside no fato de que, historicamente, as leis criadas para proteger a propriedade e o lucro são mais severas e efetivas do que as que foram implantadas para defender a vida e a dignidade.

Se as indústrias da informação e do entretenimento não podem comprovar para o consumidor comum de que o seu processo de produção é social e ambientalmente responsável, como é que eles vão exigir a mesma responsabilidade de nós?

E isso não significa doar computadores para orfanatos, informatizar ONGs ou ser simpático ao distribuir softwares gratuitamente a instituições de ensino (há várias formas de viciar uma criança, sabia? E usar alguns programas desde cedo é uma delas…). Também não basta recolher o lixo digital produzido pela obsolescência programada das máquinas desse admirável mundo novo. É preciso mais, muito mais. Dever-se-ia (acho que essa é a primeira mesóclise deste blog) chegar ao ponto de discutir o consumismo tresloucado da era digital e aonde vamos todos com esse culto ao gadget (do qual, não nego, sou participante ativo e dependente).

A provocação não é uma apologia à pirataria, mas sim um chamado à responsabilidade. Coisa que anda em falta nos dias de hoje.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.